O dia amanheceu chuvoso na aldeia. A Sara acordou cedo e ficou a olhar o tecto, na esperança de encontrar um sentido para a sua vida. O Pedro continuava a bom dormir. Que pensava ele? Não se perturba com o sentido da existência? Quem dera à Sara poder viver os dias, uns atrás dos outros, sem pensar em «coisas inúteis», como as nomeia o marido.
O Pedro cansa-se com as reflexões melancólicas e os estados de humor da mulher. Casaram-se aos vinte anos, têm a mesma idade, e dezasseis anos de vida comum é apenas perturbada pelas insatisfações dela, que parecem surgir do nada e ninguém sabe como ou porquê. Será isso que chamam de metafísico?
«Pedro», chama em voz sussurrante a mulher. Ele não dá de si. Continua sereno a dormir. Até parece que sorri. Sara sente-se só. Olha para a mesa de cabeceira a ver se os olhos alcançam um livro, revista ou jornal com que se possa ocupar. Mas esmoreceu-lhe a vontade e recolheu o braço já estendido. A capa familiar daquela revista enfastiou-a de ler fosse o que fosse.
Virou-se e continuou arregalada para o tecto verde claro – foi ideia do Pedro, o eterno optimista. O verde claro irrita-a ligeiramente. Procura desviar a atenção para a luz que atravessa como punhais as frestas dos tapassóis, uma imagem que lhe sugere qualquer coisa de bíblico e triunfante. Sente uma ligeira alegria interior, um conforto passageiro. O Pedro dorme sem melancolia.
Os estados melancólicos de Sara fizeram parte do encantamento. Acicataram a paixão de Pedro. Ela ganhava uma mística e uma auréola de mistério que lhe agradava. Atraía-o. Excitava-o mesmo. A mãe de Pedro acreditava por todos os seus santinhos que ele estava «enfeitiçado» por aquela mulher. Chegou a consultar videntes. Chegou a mandar rezar missas para «libertar» o filho. Não percebia o que via nela. Ela mal falava. Ela nem era nenhuma “belezura”, que justificasse agarrar o filho pelo que de menos racional e de mais animal tem uma pessoa.
Sara aceitou casar. Pedro dava-lhe segurança. Não que isso fosse suficiente para dissipar as suas dúvidas. Ela tinha sempre dúvidas. Ela vivia sem certezas. Pedro decidiu por ela ao fazer a pergunta «casamos?»
Continuava a olhar o tecto, clareando à medida que a luz da manhã empurrava a escuridão para fora do quarto. Suspirou fundo, sentiu uma terna ansiedade, tão familiar, a percorrer-lhe o estômago – calculava ela segundo as suas parcas noções de anatomia que mantinha da disciplina de Biologia de nono ano.
Acabou por deitar mão à revista e começou a ler, desinteressadamente, os títulos que já conhecia. Aprofundou a leitura de um artigo sobre o desemprego. Lembrou-se de uma canção de Zeca Afonso. Ouvia-a na cabeça quando o Pedro acordou.
[Qualquer semelhança com a realidade, eventos ou pessoas é mera coincidência]
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