Marta Caires: «O preço pelo quinhão de betão é alto. É o deserto. Não há ninguém para passear no ícone do autismo do poder regional, nem turistas "pata rapada".»
A Revista do Diário traz um artigo pertinente da jornalista Marta Caires, em que o relato de uma experiência na primeira pessoa, a propósito do surf, diz muita coisa de uma só vez. Pelo seu interesse público, atrevo-me, de novo, com uma acentuada vénia, a citar o texto na totalidade:
«As melhores ondas do Atlântico Norte. A primeira vez que ouvi esta frase ri-me, mas o americano sentado a meu lado no avião não estava a brincar.
Consultor de empresas e surfista a meio termo, sabia da lenda do Jardim do Mar pelas revistas da especialidade. A fama tinha chegado às revistas depois de ter passado de boca em boca, dos americanos para os australianos, dos brasileiros aos japoneses. Dera a volta ao Mundo sem passar pelos ouvidos dos madeirenses.
Em 1995, num voo de Hong Kong para Amsterdão, um homem de Los Angeles revelava-me os segredos de uma ilha que eu julgava não ter mistérios, nem surpresas. O tubo perfeito, a altura certa. Não havia dúvidas, não era outra Madeira, nem outra ilha. Era esta, a 32 graus de latitude norte, a das praias de calhau rolado. Na ignorância e no espanto, zombei da descoberta e, quando a conversa acabou, pensei que o senhor simpático fazia jus ao mito do americano inculto, que não percebe de geografia e confunde portugueses com espanhóis.
Madeira e surf eram, na minha cabeça, duas variantes de uma combinação improvável. E a convicção não seria abalada por um desconhecido, mesmo que fosse formado na Universidade da Califórnia e tivesse mais carimbos no passaporte do que eu tinha em viagens de ida e volta a Lisboa.
Não tardei a perceber o engano. Uns tempos depois desta conversa, li a primeira notícia do prodígio das ondas do Jardim do Mar. Soube da peregrinação que os surfistas faziam, vi as lembranças que deixavam nas tascas.
O surf alimentava a localidade e eu senti vergonha por ter dado prova de tão lamentável ignorância. Tinha zombado com o riso dos preconceitos e do desconhecimento. Com as piores, as mais injustas e perigosas maneiras de ajuizar factos, acontecimentos e pessoas.
As armas e os argumentos que serviram para justificar uma promenade, um jardim de relva à mercê da maresia, quebra-mares e o fim da mina de ouro que era o surf. Na agitação que rodeou as obras, não se poupou na difamação, nem se ouviu ninguém. Os surfistas, que alugavam quartos e comiam nos restaurantes do Jardim do Mar, passaram a suspeitos de toxicodependência e até se descobriram seringas entre as latadas da vinha.
Cegos, enlouquecidos pela miragem da promenade, os agitadores calaram com insultos, ameaças e insinuações todas as opiniões divergentes. Nisso, seguiram a cartilha da Madeira. Aliaram ganância, ideias feitas, confundiram aparências com poder de compra. Como se fosse possível praticar desporto de fato completo e gravata.
O preço pelo quinhão de betão é alto. É o deserto. Não há ninguém para passear no ícone do autismo do poder regional, nem turistas "pata rapada". Pelo Mundo fora, corre, de boca em boca, dos australianos aos americanos, dos brasileiros aos japoneses, a história sobre o fim das melhores ondas do Atlântico Norte.»
Marta Caires
(Revista Diário de Notícias da Madeira, "Crónica", 17.09.2006)
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