Leite Derramado de Chico Buarque.
«Eu o levava de calças curtas ao Senado, fiz fotografá-lo na tribuna de onde seu avô tantas vezes discursou. O garoto não largava os livros de História, enchia a mãe de orgulho com as notas do boletim.
Enfronhado em política desde cedo, chegou ao ginásio em condições de discutir, de igual para igual com seus professores, a situação preclitante do país.
E um dia veio me comunicar que se tornara comunista. Que seja, falei comigo. Se vier o comunismo, Eulálio d'Assumpção Palumba chegará provavelmente a algum bureau político, a um conselho de ministros, se não ao comitê central do partido.
Mas em vez do comunismo, veio a Revolução Militar de 1964, então tratei de lhe lembrar nossas antigas relações de família com as Forças Militares, até lhe mostrei o chicote que pertenceu ao seu sexto avô português, o célebre general Assumpção.
Mas na sua pouca idade, Eulálio era ainda vulnerável à influência de gente insensata, talvez mesmo de uns padres vermelhos.
Ou então lhe subiu à cabeça o sangue quente de calabrês, só sei que ele cismou de ser um herói da resistência.
Trouxe um mimeógrafo para casa, imprimia panfletos, em vão tentei lhe explicar que o heroísmo é uma vulgaridade.
Um noite carregou suas tralhas numas mochilas, e minha filha entrou em desespero, disse que ele tinha partido para a vida clandestina.
Não demorou muito, sete agentes da polícia invadiram nosso apartamento, vasculharam tudo, sacolejaram Maria Eulália, perguntaram por um tal de Pablo, e eu lhes disse que havia um equívoco, o garoto era um Assumpção de boa cepa.
Ainda lhes apontei o retrato do meu avô na moldura dourada, mas um brutamontes me deu um tapa na orelha e me mandou enfiar o avô no cu.»
pp 148-149 (Publicações Dom Quixote: 3ª edição: 2009)
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