«And some people say that it's just rock 'n' roll. Oh but it gets you right down to your soul» NICK CAVE

sábado, novembro 30, 2013

Gisela João, um caso sério no Fado

Grande álbum de estreia, mas é sempre possível melhorar. Daí estranhar o demasiado unanimismo, sobretudo na crítica especializada, sem apontar aspectos passíveis de melhorar.

Esta mulher é um caso sério no Fado. Nem parece ser uma estreia discográfica, pela maturidade revelada, pela intensidade que dá aos temas e a emoção que transmite. Ela encarna as palavras e vive o seu contexto emocional e existencial. «O que interessa é sentir o Fado», já dizia Amália.

Numa palavra, Gisela João é INTENSA: tem ALMA e EMOÇÃO, na sua interpretação, e esta vale 99% do Fado, como disse uma vez José Mário Branco. Fado é a abertura do coração e a expressão de emoções. Gisela João fá-lo de modo natural e de uma forma expressiva. E tem uma voz com uma força e explosividade que são raras.

Há uma entrega, uma espontaneidade e uma honestidade (candura mesmo?) que a torna genuína, orgânica, visceral, transparente, intensa, sem nada a intermediar a ligação directa (in your face e sem rede) que estabelece com o ouvinte. É muito real, frontal e presente. Há uma força, energia (stamina) e emotividade que se sentem, ao mesmo tempo são viscerais e à flor-da pele. E tem muito caminho para explorar a sua voz e a sua marca na interpretação. Mais anos no ambiente lisboeta do Fado trará essa progressiva e ainda maior maturidade e identidade.

O que senti ao ouvir o primeiro tema, Madrugada Sem Sono, fez-me lembrar a emoção quando ouvi a Amália cantar Gaivota, Camané a cantar Sei de um Rio ou quando ouvi o tema Medo por Júlio Resende em dueto com Amália.

Pena, no meu ponto de vista pessoal, que o som esteja muito limpo e certinho, com muito lustro, o que contraria as características do espaço (casa antiga e velha) escolhido para o vídeo Meu Amigo Está Longe (o tema conta com a genialidade da letra de José Carlos Ary dos Santos e da música de Alain Oulman). O espaço da casa resulta muito bem no vídeo.

A meu ver, o álbum ganharia se, com aliado à qualidade do som, tivesse esse tipo de textura da casa no vídeo ou da própria capa do disco. Com mais rugosidade, mais calor. A imagem da capa tem grão e não a nitidez e limpidez do som do álbum. Estou certo que Gisela João prefere a textura da capa do álbum e do espaço da casa onde foi filmado o primeiro vídeo.

Por outras palavras, o som deveria ser mais orgânico, visceral e espontâneo, isto é, mais de acordo com a própria interpretação e forma de estar da Gisela João, do ambiente do primeiro vídeo e até da imagem da capa desta estreia discográfica. A fadista em questão não gosta de cantar em "laboratório", isto é, em ambientes assépticos. Gisela João sabe que ela e o Fado precisam de ambiente e de calor humano. O som do álbum não deveria ser tão cristalino e limpinho, porque até não é assim o ambiente do Fado, canção urbana, da rua, do povo.

(A este respeito, o som cristalino nota-se mais numa aparelhagem mais audiófila. Com o meu amplificador Yamaha AX-592 (trezentos e tal euros há 12 anos), mais musical e nada audiófilo, ligado a umas colunas Monitor Audio (linha Silver), o disco de Gisela João soa melhor, precisamente porque o Yamaha lhe dá mais "sujidade" e "grão" e nota-se menos "perfeição". Foi nestas condições que ouvi nas primeiras vezes o disco e ele me despertou tantas emoções. Só dei pelo som cristalino por via de um amigo com amplificação da Musical Fidelity e quando meti na minha aparelhagem uma amplificação audiófila: amplificador de potência Myryad MA240 com pré-amplificador Rega Cursa. Prefiro ouvir Gisela João com o Yamaha, sem dúvida.)

É um disco de estreia, Gisela João é muito nova, mas o disco poderia, se calhar, ter já um cunho mais personalizado e marcado, também por via da própria produção. Não pode ser tudo feito com régua e esquadro. Tem que se sentir a já referida ambiência do Fado, talvez mais do que a competência e perfeição técnicas. Para também Gisela João ter mais espaço para a sua marca pessoal e se distinguir ainda mais.

Corro o risco de ser injusto, mas sinto que o álbum poderia marcar mais a diferença através da inclusão de originais ou de uma interpretação com maior marca própria, isto é, acrescentando mais a estes temas já gravados por muita gente, além da própria Amália. Incluindo o instrumental de Carlos Paredes (há quem diga que não deveria estar no meio do disco, mas relativizo porque gosto muito do tema pela emoção que me proporciona e pela excelente execução). Os temas, excepção maior para o primeiro, estarão muito direitinhos e fiéis aos originais.

Madrugada Sem Sono soa inovador e diferenciador pela inclusão do longo solo de guitarra (permite ao tema respirar), e, na ponta final, a vocalização juntamente com uma "malha" de guitarra, criando um pico de intensidade/dramatismo que já não esperávamos e nos arrebata - deixa-nos prostrados.

Nesse tema há ainda a letra e o contraste entre a vocalização mais suave e mais intensa. A comunicação de tal intensidade não está ao alcance de qualquer um - além da força vital interior, tem de haver uma sensibilidade e um sentido/lucidez existencial profundos. Na voz de Gisela João as palavras fazem-se carne, porque tem experiências de vida que lhe dão a densidade para a criação, isto é, tem alguma coisa para dizer e proporcionar sentido e emoção a quem a escuta.

No jornal METRO (Julho 2013), dizia-se o seguinte: «Não nos espantamos só com a voz, corajosa, sólida a qualquer momento. Branda, macia, meio sussurrada quando o fado assim o pede; ou aguerrida, brava e explosiva se o serviço ao fado assim o exige.»

O contraste é uma qualidade importante já que concorre também para a INTENSIDADE e a EMOÇÃO que brotam dos temas do disco de estreia de Gisela João. O contraste permite experiências intensas, fortes, marcantes. Como disse Arthur Rubinstein: "Contrast is a very serious and important thing in life. That is my main filosophy."

A Saudade é uma mistura de amor e tristeza/melancolia. Alguns fados mencionam mesmo o prazer ou alegria na Saudade (memória do amor, como se fosse uma forma de reviver a intensidade desse sentimento). Gisela João menciona no citado jornal: «há um ensaio sobre a saudade que diz que “a saudade não é mais que o excesso de amor em relação a algo”. Está sempre ligado ao amor.»

Deste auto-intitulado disco de estreia de Gisela João, gosto e destaco os fados mais intensos (ou «tristes» e «lúcidos», como dizia a Amália - e a lucidez torna o pensamento triste...) como o Madrugada Sem Sono, Meu Amigo Está Longe, Vieste do Fim do Mundo, Voltaste, Sou Tua e Maldição.

Estes são os mais belos.

Tais fados mais tristes contrastam, mas aqui mina-se a coerência e equilíbrio do disco, ao estarem intercalados com fados muito festivos e com uma organização previsível e óbvia (quase matemática) ao longo do disco: dois ou três fados mais tristes/dolentes seguido de um fado festivo, com um instrumental a meio do disco. Este intercalar parece ser uma prática tradicional.

Precisaria, pois, de um fio condutor mais harmonioso, com uma coerência mais profunda, já que provoca uma alteração abrupta e constante da linha das emoções, em que se passa do dia para a noite e da noite para o dia, o que cansa o ouvinte. O que senti, pessoalmente, foi que esses fados mais festivos deveriam estar no fim do disco, se tivessem de estar. Pela forma como estão intercalados com os restantes fados, senti-os como obstáculos à fruição e à linha emocional do álbum. O subir e descer teria de ser mais suave, mais distribuído no tempo do álbum.

Carlos Saura, realizador do filme Fados (2007) também prefere os fados mais intensos ou melancólicos: “today, we find that distinctive Portuguese saudade, the sadness, melancholy and regret, in the lyrics and in the way Fados are sung. They are, in my opinion, the most beautiful Fados” (August 2005).

Não vamos colocar peso nos ombros da artista com comparações com o nível da Amália, mas uma coisa é certa: há um enorme potencial em Gisela João que pode rivalizar com o nível (não estilo ou voz, porque cada fadista tem o seu estilo e a sua voz distinta) que atingiu a grande diva do Fado. Tenha ela uma boa gestão de carreira, condições ao nível de compositores, letristas, músicos, produtores e de gravação. Poderá ir muito longe, quem sabe ainda mais que Amália em certos aspectos, já que os tempos de globalização permitem também outras oportunidades em termos de carreira e público.

O Fado não é a minha música preferida nem a que mais ouço (o rock é que manda), mas, como português, a minha alma também ressoa e vibra no Fado, os tais fados mais intensos, que não é igual a ser triste. Há um certo horror actual à melancolia, sinónimo de infelicidade, mas como diz um provérbio chinês, "Não podemos impedir que os pássaros da tristeza voem sobre a nossa cabeça, mas podemos evitar que façam ninhos em nosso cabelo." Deixe-se voar os pássaros, sem os deixar aninhar-se. É bonito ver os pássaros voar...

Através do Fado, as pessoas sentem-se acompanhadas nos sentimentos e dramas existenciais, sendo, assim, a arte catártica e terapêutica. E disso bem precisam os portugueses no momento que o País atravessa.

Mais Gisela João, menos barbitúricos.

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Posteriormente ao texto:

Concertos:
Gisela João faz stage diving e crowd surfing com Linda Martini (13.2.2014)

Vídeos:
- Meu Amigo Está Longe
- Vieste do Fim do Mundo
- Maldição (Fado Cravo)

Entrevistas:
- Entrevista a Gisela João no Bairro Alto - RTP-2 (início de 2013)
- Entrevista no Fala com Ela, na Radar (Fevereiro de 2014): em breve disponibilizar-se-á o link directo

Outros:
- Gisela João: melhor disco para os críticos do Público
- Gisela João: melhor disco para a equipa do Blitz
(nota: o unanimismo deixa-me sempre de pé atrás - há aspectos referidos neste post que a crítica especializada não tocou e que poderia ter pelo menos aflorado. Gisela João deve manter-se lúcida e auto-crítica para ser ainda melhor no segundo disco)

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