«And some people say that it's just rock 'n' roll. Oh but it gets you right down to your soul» NICK CAVE

domingo, janeiro 19, 2014

Arte com fins terapêuticos

illustration copyright December 2013: The Boston Globe

Sublinharia, antes de me referir à Biblioterapia, que a arte é terapêutica porque também permite ao ser humano transcender o quotidiano, o ramerrame, a costumeira estupidificante casa-trabalho-casa. «Art [...] can raise man to the divine» disse Ludwig van Beethoven. Não nos basta sobreviver (pão). Precisamos de nos desenvolver, crescer e florescer noutras dimensões. Assim é a condição humana.

O artigo Doentes depressivos "aviam" receitas na biblioteca, no jornal Público (13 de Janeiro de 2014) divulga que «há uma nova terapia para depressão no Reino Unido e, a melhor parte, é que além de "low-cost" não apresenta efeitos secundários. É chamada de Biblioterapia e faz jus ao nome: em vez de fármacos, são prescritos livros.» Sabe-se que, «de acordo com alguns especialistas, além de fomentar a empatia, a leitura pode ajudar os pacientes a superar as suas fragilidades emocionais.»

É melhor "aviar" uma "receita" de livros, seja de auto-ajuda ou literatura (ficção), discos, filmes ou outro objecto de arte, do que comprar pastilhas na farmácia. Dinheiro melhor empregue e sem efeitos secundários.

O método, chamado de Books on Prescription, continua a dizer o artigo no jornal Público, «começou a ser utilizado oficialmente em Junho, pelo Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS), e foi agora divulgado por Leah Price, investigadora e professora da Universidade de Harvard, no jornal The Boston Globe, em 22 de Dezembro de 2013. Se o psicólogo ou psiquiatra diagnostica o paciente com depressão leve ou moderada, uma das opções é passar-lhe uma receita com um dos livros aconselhados», explica a investigadora.

Como refere esse artigo, When doctors prescribe books to heal the mind, «a book does worse than a therapist, but it’s better than nothing.» «If your aim is less to help patients explore the underlying causes of their condition than to offer step-by-step instructions for managing it, then who cares whether the exercises emanate from a mouth, a manual, or even a smartphone app?» «But even therapies like cognitive-behavioral therapy require the patient to feel recognized and understood by another human being.» A presença humana é sempre importante.

Aquela, porém, não é a primeira vez que o Serviço Nacional de Saúde britânico aposta neste tipo de programas. «Uma outra iniciativa, denominada The Reader Organisation, por exemplo, reúne pessoas desempregadas, reclusos, idosos ou apenas solitários para que, todos juntos, leiam poemas e livros de ficção em voz alta», refere o citado artigo do jornal Público.

Se não é surpresa que os livros de auto-ajuda podem ajudar o Eu, os efeitos terapêuticos da literatura é algo mais controverso ou, pelo menos, não estudado ainda o suficiente (ver mais adiante o artigo A leitura como função terapêutica: biblioterapia). Um elemento da The Reader Organisation refere “I don’t think we could claim that they are therapy or a substitute for therapy,” “but for those who don’t quite need therapy, Mood-Boosting Books could be a nice little lift.”

Todavia, ser um lugar comum hoje que os livros fazem bem e estudar-se a possibilidade de que a literatura e livros práticos podem curar, é uma evolução face ao que acontecia no passado, em que os médicos acreditavam que ler poderia causar doenças físicas e mentais. «In 1867, one expert cautioned that taking a book to bed could “injure your eyes, your brain, your nervous system.” Some social reformers proposed regulating books as if they were drugs», pode ler-se no artigo do Boston Globe já citado. E ainda: «As late as 1889, one politician called fiction “moral poison.”»

O Público termina o artigo Doentes depressivos "aviam" receitas na biblioteca recordando que a «Biblioterapia foi desenvolvida com base numa investigação do psiquiatra Neil Frude, em 2003, que concluía precisamente que os livros tinham potencial para se assumir como substitutos dos anti-depressivos. Ao acompanhar o percurso dos seus pacientes, Frude rapidamente percebeu que estes compensavam a frustração da espera pelos primeiros efeitos dos fármacos — que podia durar anos — com a leitura, como forma de entretenimento.»

O artigo científico de Clarice Fortkamp Caldin da Universidade Federal de Santa Catarina, no Brasil, A leitura como função terapêutica: biblioterapia, de 2001, resume que a «biblioterapia clássica admite a possibilidade de terapia por meio da leitura de textos literários. Contempla a leitura de histórias e os comentários adicionais a ela. Propõe práticas de leitura que proporcionem a interpretação do texto. O fundamento filosófico essencial da biblioterapia é a "identidade dinâmica"”. O processo de identificação do leitor/ouvinte vale-se da introjeção e da projeção. Parte-se do pressuposto que toda a experiência poética é catártica e que a libertação da emoção produz uma reação de alívio da tensão e purifica a psique, com valor terapêutico.»

Nick Cave referiu-se ao poder da música na alteração do estado de espírito da pessoa: "Music has the potential other arts don't have, which is to utterly change you within three minutes. Your whole body chemistry can change, your mood, your perspective..." (revista Mojo, 2005). Será preciso evidência científica para saber destes efeitos sobre o ser humano, como lhe diz a experiência de uma vida como músico?

Alain de Botton (autor, com John Armstrong, de Art as Therapy - 2013), defende que certas obras de arte oferecem pistas para lidar com as tensões e confusões da vida quotidiana. Isto além da companhia, ocupação, prazer estético, entretenimento e distração pura e simples, compensações com efeitos benéficos para o bem-estar mental e emocional.

A fruição da obra de arte é um espaço de liberdade pelas interpretações que oferece e abertura a outras dimensões emocionais e existenciais. Liberdade ainda pela possibilidade de mudança de trajectórias de vida e da identidade pessoal dinâmica, que se vai construindo dia-a-dia. Permite-nos e estimula-nos a ir para além de nós mesmos, a nos superarmos, transcendermos e libertarmos, tanto no pensamento como na acção, com efeito catártico.

Há obras que são nutritivas em termos psicológicos, emocionais e intelectuais. Podem inspirar-nos, pelas perspectivas que nos oferecem, a encarar certos assuntos ou problemas de outra forma ou de uma forma mais benéfica/positiva, mais ajustada à realidade (interna e externa) e a encontrar soluções (projecção).

A arte é também forma de conhecimento sobre o ser humano e a vida. Os grandes autores e as grandes obras tocam nas questões essenciais e mais fundas da natureza humana, precisamente porque a sua sensibilidade apurada o permite.

Há obras (literárias, musicais, etc) que nos podem estimular e deixar dicas para ser e a viver melhor, porque podem conduzir ao melhor conhecimento de nós mesmos (auto-conhecimento) - ajudar tanto nos conflitos íntimos como externos. Caroline Shrodes, citada em A leitura como função terapêutica: bliblioterapia, «viu a arte como um meio de proporcionar um tipo de reconciliação entre o princípio do prazer e o princípio da realidade.»

(A este propósito, Eduardo Lourenço, registou no livro O Labirinto da Saudade: Psicanálise Mítica do Destino Português, de 1978, o seguinte: «É pena de Freud não nos tenha conhecido: teria descoberto, ao menos, no campo da pura vontade de aparecer, um povo em que se exemplifica o sublime triunfo do princípio do prazer sobre o princípio da realidade.» O baixo consumo de arte no País poderá ser uma das razões da nossa dificuldade colectiva na conciliação/equilíbrio entre o princípio do prazer e o princípio da realidade?)

A obra de arte pode também servir de escapismo, embora fugir da realidade possa trazer efeitos negativos, instrospeção (a pessoa reflecte, entende e educa as suas emoções: abre a possibilidade de mudança comportamental), pacificação, sublimação ou catarse (resposta emocional), e trazer mais serenidade, esperança ou conforto, nem que seja em saber que não estamos sozinhos (projecção: ligação com o nosso caso; identificação: transformação segundo o modelo ou exemplo de outrem) na nossa visão do mundo, dúvidas, indagações, questões emocionais e sofrimentos existenciais.

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Links:
A leitura como função terapêutica: bliblioterapia (artigo com 17 páginas)
Doentes depressivos "aviam" receitas na biblioteca
Books on Prescription
When doctors prescribe books to heal the mind
The Reader Organisation

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