«And some people say that it's just rock 'n' roll. Oh but it gets you right down to your soul» NICK CAVE

quarta-feira, dezembro 24, 2014

Qualquer acto altruísta tem um retorno para quem o pratica

Cristiano Ronaldo, diz quem sabe, ajuda muita gente sem qualquer publicidade de tal facto (apesar de algumas dessas acções serem publicitadas). Uma ajuda desinteressada e genuína, sem querer nada (material ou imaterial) em troca

Emídio Carvalho, no livro A Sombra Humana, aborda a questão do altruísmo, de uma forma frontal e que aprofunda e complementa o que eu escrevi no texto Não há altruísmo que não tenha um egoísmo.

Um texto com potencial para polémica, aberta ou não, porque é uma área sensível e subtil: mexe com as luzes e sombras de cada pessoa. Com sentimentos que nem estamos conscientes deles. Questionar, aprofundar ou fazer juízos nessas áreas é altamente arriscado. Depressa pode levantar um sentimento de ofensa e até de ameaça ao nosso ego, com perigo de trazer instabilidade ao ambiente seguro que nos esforçamos tanto por criar.

Como se pode questionar outras facetas da natureza do que é positivo, bom, louvável? Mas, lendo mais fundo, será positivo fazer a prova dos nove ao nosso altruísmo. Para termos a certeza que a nossa bondade, a dádiva ao outro, tem apenas subjacente um sentimento puro e honesto, a partir do coração.

Vou começar logo pelo cerne da questão e pela prova dos nove colocada por Emídio Carvalho: «se o trabalho que faz [de ajuda e assistência aos outros] passa despercebido, se não sente a necessidade de informar os seus amigos e conhecidos, então continue! Está a prestar um óptimo serviço.»

E diz mais: «fazê-lo [envolver-se em projectos humanitários] pelo simples facto de querer ter a experiência, de ser útil sem esperar algo em troca, aí vale a pena.»

Salvaguarda de novo: «é importante ajudar quem precisa de ajuda, mas mais importante é verificarmos os nossos verdadeiros motivos

Alerta e aconselha: «Se está envolvido num qualquer projecto de ajuda aos mais carenciados verifique se comenta o seu envolvimento com outros. Se tem necessidade de fazer saber aos outros que está neste projecto é preferível que o abandone imediatamente pois está apenas a alimentar a sua Sombra.»

E pergunta: «quem, de entre nós, tem a coragem de admitir que por vezes (ou muitas vezes), faz o que faz por motivos menos íntegros [ou altruístas]?» Isto porque a nossa «sombra tem uma agenda diferente da do nosso ego. E tudo fará para conseguir os seus objectivos.»

E acrescenta: «Muitas das pessoas envolvidas em projectos humanitários têm uma necessidade de sentir que prestam, que são boas ou que valem enquanto seres humanos.»

Há mesmo estudos que conluem que o acto de dar (com o coração, sentido) é mais recompensador para o ser humano do que o de receber. Cabe perguntar: será que dou pela compensação que me traz, isto é, pelo que espero em troca, nem que seja emocionalmente, do acto de dar? No limite, qualquer acto altruísta tem um retorno (egoísmo ou recompensa do interesse individual) para quem o pratica. No filme Into The Wild há uma frase lapidar: «Happiness is only real when shared». A partilha é palavra chave.

Emídio Carvalho exemplifica a sua tese: «será que o fundamentalista que tenta desesperadamente converter todos à sua ideologia está convencido que isto é para o melhor bem de todos, ou será que o que o leva a agir assim são sentimentos de culpa, frustração, ansiedade e dúvidas existenciais?»

E continua: «É tão fácil ajudar os sem-abrigo, mais que não seja para que a nossa sombra absorva mais daquele sentimento de superioridade. Notei já diversas vezes que as pessoas que se envolvem em projectos de apoio aos sem-abrigo abandonam os mesmos em pouco tempo. Sem se aperceberem, as suas sombras indicaram-lhes que não têm necessidade de se sentirem superiores.»

Nicholas Mosley afirma que as «pessoas como os católicos e islamitas, são-no muito mais para poder pertencer a um grupo que ofereça um apoio emocional num mundo conturbado, do que por motivos de escolha feita depois de uma busca de verdade e significado na vida.» E «lá se vai por terra a teoria das revelações divinas e da integridade individual», nota Emídio Carvalho. Mas, a nossa tendência natural é «defender os nossos valores morais», as nossas escolhas, «justificando-nos por cada decisão». Mesmo que estejamos a iludirmo-nos. «Lembre-se apenas que a verdade nunca precisou de ser defendida», sublinha.

Emídio Carvalho adverte que devemos manter sempre presente que a complexidade do ser humano e da vida humana nunca serão completamente compreendidas. Por isso, «não nós podemos viver a fantasia de que sabemos muito bem quem somos e o que queremos.» Atenção àquilo que não é do agrado do Ego, isto é, «tudo o que é contrário àquilo que desejamos que os outros pensem de nós» e que nós pensemos sobre nós mesmos.

Mais perguntas: «Será que as pessoas que dedicam toda a sua vida ao serviço dos outros, vivendo sem qualquer conforto ou prazer, não o farão movidas apenas por uma enorme insatisfação, depressão e raiva? Será que o seu sacrifício é uma coisa assim tão boa? Será que é mesmo uma escolha? Será que a pessoa que ganha o prémio Nobel da paz não terá a necessidade de ser necessário? Será que estamos a ser cínicos ao tornarmo-nos conscientes dos valores opostos àqueles que expressamos conscientemente, ou será uma forma mais profunda de honestidade?»

Mais perguntas ainda: «Será que uma pessoa foi "santa" porque sacrificou a sua viagem nesta realidade em serviço aos outros? Será que a sua vida poderia ser tão tenebrosa que a única opção era não a viver? Será que um dos aspectos dos santos é que de facto não são capazes de viver a sua própria aventura nesta vida? E quem, entre nós, poderá fazer este tipo de juízo?»

E as perguntas continuam:

«Será possível que uma vida de boas obras pode existir lado a lado com uma vida interior carregada de sentimentos torturados? Não será possível que uma vida interior rejeitada, apesar de no exterior aparentar muita iluminação, possa mascarar uma sombra [interior] poderosa?» «Não podemos cair na tentação de subestimar o poder da sombra do ser humano.»

«Será que a humanidade é inerentemente boa? Seremos pessoas boas apenas porque apenas a nossa cultura nos criou assim? Será que é possível existir bondade sem o seu oposto? Será que uma bondade constante, ao longo de muitos anos, não pode tornar-se uma força demoníaca? Basta-nos olhar para a história da humanidade para ver que muitos dos actos bondosos tiveram o seu peso e preço.»

«Quantas pessoas não chegam à segunda parte das suas vidas sem uma certa quantidade de arrependimentos, rancores, ressentimentos, culpas e desculpas? E, contudo, na altura, pensámos que estávamos a agir para o melhor bem de todos, com a melhor das intenções.»

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A propósito:
Não há altruísmo que não tenha um egoísmo

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