«And some people say that it's just rock 'n' roll. Oh but it gets you right down to your soul» NICK CAVE

sábado, dezembro 30, 2017

Silêncio

A sustentável leveza do Silêncio (Setembro 2013)

Quanto sentimos necessidade dele, e não o tememos, procuramo-lo e abraçamo-lo.

«Aquilo a que chamamos silêncio só se torna real e efectivo através de um processo de despojamento interior, e de nenhuma outra maneira», refere José Tolentino Mendonça na crónica Quem Quer Ouvir O Silêncio De B Fachada?* E diz mais adiante: «o silêncio não é simplesmente exterior. É preciso ter "silêncio no coração".»

«O silêncio que procuro é o silêncio interior», diz Erling Kagge no livro Silêncio Na Era Do Ruído (Quetzal, 2017). É esse silêncio que é mais «interessante» e que «cada um de nós tem de criar». Tem a ver com estar em paz consigo mesmo. «Quanto mais silencioso ficava, mais ouvia» a natureza, salienta aquele explorador norueguês.

Ele não encara o silêncio como uma «renúncia ou algo espiritual, [mas] como um recurso prático para viver uma vida mais rica», isto é, «como uma maneira mais profunda de sentir a vida do que nos limitarmos a ligar a televisão para ver o noticiário, uma vez mais.» Para ele, o silêncio tem a ver com a «redescoberta, por meio da pausa, das coisas que nos dão alegria

Tal como a redução da velocidade, em que se vive, e o parar dependem de um «abrandamento interno», fazer silêncio é também um processo (de «despojamento») interno. «Tem a ver com tirar, subtrair algo», escreve Erling Kagge. Exige «escutar-se a si próprio, perfurando camadas de distracção e automatismo», e outras formas de ruído.

Mas, como aquele intelectual insular adverte, «esta audição a nós próprios não se faz sem coragem [pode haver medo de estar perante si próprio e conhecer o seu coração, a sua essência, confrontar-se com os seus sentimentos e pensamentos] e sem esvaziamento [libertar-se de hábitos velhos que levam sempre aos mesmos sítios].»

Kagge, por outro lado, nota a importância de um "enchimento": «encher o silêncio com a minha própria pessoa.» Ficar, tranquilamente, consigo próprio, em lugar de «procurar, incessantemente, novos objectivos que atraiam a nossa atenção para fora e longe de nós.» Uma fuga de nós mesmos, na qual se evita até pensar: por ser uma «realidade tão brutal», optamos por «pensar e sentir outra coisa qualquer», nem que seja através de uma dependência. Parar e fazer silêncio são encontros (brutais) connosco.

O silêncio, a interioridade e a lentidão são desvalorizados numa sociedade dominada pelo ruído, pela extroversão, pela velocidade (e sobreocupação). «É mais difícil valorizar o silêncio do que o ruído», defende o autor norueguês. São valores como o silêncio, a lentidão e as capacidades de espanto e de contemplação (sem finalidade), que permitem viver com profundidade e atenção plena ao pormenor, sem cair na habituação do olhar e do sentir, e valorizar/apreciar a muita Beleza, Prazer e Alegria quotidianos, disponíveis e gratuitos, por vezes mínimos e subtis.

Em vez de «permanecer imóvel e desligar-me do mundo durante um instante», refere Kagge, uma pessoa tende a ocupar-se com algo, ainda por cima com tanto apelo à distracção, evitando o silêncio interior («here we are now, entertain us», diz o icónico tema dos Nirvana). O silêncio que permite «sentir, em vez de pensar demais», «cada momento [ser] suficientemente amplo» e «não viver através de outras pessoas ou de outras coisas».

Para Erling Kagge, «falar é precisamente aquilo que o silêncio deve fazer». E «devemos falar com ele, de modo a aproveitarmos o seu potencial.» Citando o poeta Jon Fosse: «talvez seja assim, não só porque o silêncio acompanha a admiração, mas também porque tem uma espécie de majestade, sim, como um oceano, ou uma interminável extensão de neve. E quem não fica admirado com essa majestade, teme-a. E essa é, muito provavelmente, a razão pela qual muitos temem o silêncio (e é por isso que há música em qualquer lugar, por toda a parte).»

De que nos serve o silêncio, a interioridade e a lentidão se não nos permite viver melhor, ser de um modo mais pleno e consciente (encontrar-se) e «fazer uma experiência mais autêntica de si»* (crescer e mudar)? A vida não pode resumir-se a estar ocupado e a ser eficiente.

O articulista madeirense, na crónica O Que É Compreender*, fala da «partilha do silêncio. Como é que percebemos que duas pessoas se acompanham? Pela forma como conversam? Certamente. Mas talvez ainda mais pela forma como acolhem o silêncio uma da outra. Entre conhecidos o silêncio é um embaraço, sentimos imediatamente a necessidade de fazer conversa. Mas quando nos acompanhamos, o silêncio é uma compreensão que une.»

A este respeito, o autor de Silêncio Na Era Do Ruído nota o seguinte: «na minha experiência, a verdadeira intimidade só se atinge quando ficamos em silêncio. Numa relação amorosa, sem a ternura que se segue à paz e à quietude, é difícil sentir as subtilezas e chegar a uma compreensão mútua. A tagarelice e outros ruídos podem tornar-se autênticos mecanismos de defesa para ajudar a evitar a verdade.» E remata: «se o/a nosso/a companheiro/a não nos compreende quando estamos em silêncio, não será ainda mais difícil que nos compreenda quando falamos?»

Virginia Woolf diz o essencial sobre o silêncio, em The Waves: “How much better is silence; the coffee cup, the table. How much better to sit by myself like the solitary sea-bird that opens its wings on the stake. Let me sit here for ever with bare things, this coffee cup, this knife, this fork, things in themselves, myself being myself.”

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Conexões:
Science says Silence is much more important to our brains than we think
Parar para viver melhor
Arte da lentidão, por José Tolentino Mendonça
Desligar do facebook
Prazer de uma liberdade
A minha alma gémea sou eu próprio

* in Crónicas De José Tolentino Mendonça: Que Coisa São As Nuvens (Expresso Impresa Publishing 2015, pp16-17, 26 e 32).

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