«And some people say that it's just rock 'n' roll. Oh but it gets you right down to your soul» NICK CAVE

terça-feira, abril 16, 2019

«A filha da mãe»: memórias da passagem à idade adulta


O relato de memórias anterior, História em pedacinhos - as casas da minha infância e os tempos de chá sem açúcar (Chiado Editora, 2016), deixou em aberto uma sequela, cobrindo a fase mais pulsante e vibrante da vida do narrador-personagem, ou de qualquer pessoa, que é a juventude e a entrada na idade adulta.

A continuação da história faz-se com A filha da mãe - os pedacinhos que faltavam (Chiado Editora, 2018), que traça a memória de uma época, de uma viagem iniciática, de um retorno às origens e da passagem à vida adulta. E do primeiro grande amor. São ingredientes que permitem a construção de uma narrativa fluída e estimulante. Há vidas que dão um livro. O relato pelo narrador-personagem faz-se na primeira pessoa, em coerência com o facto de ser um testemunho pessoal com sensibilidade e ternura.

«Esta era, sobretudo, uma viagem de reconhecimento, um afundar dentro de mim para descobrir quem era ou queria ser» (p.50). Portanto, um processo de auto-indagação, de escolhas e definição de uma identidade. A viagem no mundo remete para um percurso interno: «tinha necessidade de ser eu, autêntica, honesta comigo mesma sem incomodar o resto do mundo» (p.76). Ainda por cima sem as figuras tutelares (pais) presentes: «agora estava por minha conta» (p.64).

Depressa percebeu que a liberdade e a autonomia tinham um preço. «Compreendi que estava só, finalmente era dona do meu nariz, mas essa liberdade tinha os seus custos. Habituada a andar de "muletas", agora devia aprender a andar solta e suportar os tropeções e quedas que fossem necessárias, esconder as nódoas negras e enxugar as lágrimas sem ajuda» (p.67).

A protagonista tinha outras ambições, era um espírito livre e inquieto, não queria viver segundo uma receita. «[P]recisava ver algo mais do mundo. Precisava conhecer outras pessoas, outros modos de vida»; «queria ver mais, a vida não se podia resumir a crescer, casar e ter filhos» (p.58). «Agora, na ilha, convivia com rapazes, mas não pensava neles como futuros maridos, éramos amigos e divertíamo-nos juntos» (p.63).

Maria Cecília, recorde-se, viajara para a Venezuela aos seis anos de idade, em 1955, deixando para trás o Jardim do Mar, uma ilha dentro de outra ilha, a Madeira. Em 1973, nas vésperas da Revolução em Portugal, regressou à terra de origem. É este o ponto cronológico em que arranca a nova narrativa, que contém algumas analepses, que dão conta de episódios anteriores à viagem, como a recusa dos pretendentes ou a experiência de trabalho, que são importantes para moldar a personagem e compreender o presente.

Embora as suas raízes estivessem na Ilha, tinha crescido na América do Sul, noutra cultura. Por isso, o choque com algumas formas de ser e estar da aldeia é inevitável. «Eu era um híbrido, tinha a rudeza da ilha por herança e a alegria e o ritmo da terra tropical recebida de graça» (p.27). Por conseguinte, não era fácil lidar com esses dois pólos antagónicos, entre os quais a protagonista vai «encontrar o seu rumo» e identidade, com os seus dilemas e dores.

No entanto, na aldeia, dançava-se ao som das músicas modernas como o Je T'aime,...Moi Non Plus, na versão de Serge Gainsbourg com Jane Birkin (1969), que foi proibida em Portugal na época. Era um sinal de abertura aos novos tempos, em contraponto com o conservadorismo de valores e costumes dominante naquela localidade e no país. Essa abertura seria potenciada pela Revolução de 1974. E a chegada da televisão.

Com a revolução, a abertura ao conhecimento através da organização da biblioteca, a criação de uma cooperativa e o trabalho voluntário de serviço social. A casa da protagonista tornou-se um centro de encontro, baile e convívio. As circunstâncias vieram ditar também mudanças internas. «Os ventos de Abril não trouxeram apenas a liberdade para o país, acompanhando essas mudanças, eu própria mudava também» (p.112).

O relato das mudanças na aldeia e no interior da protagonista culminam com a vivência do primeiro grande amor, numa «noite de Setembro, com a lua em quarto crescente»: «e atirei-me como se atira um equilibrista, sem rede», porque «não me podia permitir deixar de viver essa felicidade» (p.145). E a felicidade daquela paixão foi vivida (confieso que viví) precisamente porque houve entrega.

A filha da mãe termina como um novo desejo de mudança e a saída: «o tempo passado na ilha foi necessário para o meu crescimento», mas a «ilha maravilhosa parecia-me pequena, as altas rochas me asfixiavam, tornavam-se redutoras» (p148).

Cá esperamos pelos «pedacinhos» que ainda faltam.

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