«And some people say that it's just rock 'n' roll. Oh but it gets you right down to your soul» NICK CAVE

segunda-feira, agosto 22, 2005

4. Funcionário cansado

Poema dum Funcionário Cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão

Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?

Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só


António Ramos Rosa

Este poema vem a propósito dos docentes que caem na tentação ou no conforto (são estimulados fortemente nesse sentido, o que não é desculpa para a submissão ou servidão voluntárias) de investirem mais em serem funcionários e menos em serem educadores. Quantos de nós já não pensaram em hora de balanço...«Sou um funcionário cansado dum dia exemplar / Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?»
Quantos de nós já não sentiram que alma não acompanha os gestos mecânicos da mão? Que temos os «sonhos trocados»? Por que deixamos que nos mecanizem, instrumentalizem, nos matem aos poucos com a rotina e nos troquem os sonhos? O mal-estar docente é mais profundo do que às vezes se pensa...
Porque Educar tem a ver com o livre pensar, a criatividade, o crescer, o transformar. E não educamos se não somos livres nós mesmos. Se nos limitamos a ser mais um funcionário, mais uma peça na engrenagem burocrática, dispensáveis. Vamos ser basicamente ou apenas maquinais transmissores de conteúdos, especialistas no ensino de técnicas, peças no aparelho ideológico de Estado, entidades descartáveis ou vamos ser também e sobretudo pessoas com visões, ilusões, entusiasmo, sonhos, horizontes utópicos, movendo-se em espaços de liberdade, autonomia e criatividade, criadores de interioridade, fundadores de mundos e «pastores de projectos», privilegiando a dimensão relacional?
Frequentemente, o educador é mau funcionário porque tem um ritmo próprio e não se submete ao ritmo da organização, em especial quando o ritmo desta não existe ou se tornou numa arritmia crónica. O educador acredita no poder criador da palavra e acredita que o seu falar faz diferença. O funcionário perde o pio, opta muitas vezes pelo silêncio. Como diz Rubem Alves, «o que caracteriza o oprimido é a sua incapacidade para falar e o seu medo de fazê-lo.»
Somos livres... escolhemos o nosso caminho em consciência. E benditos os que se cansam de ser funcionários em Educação e encontram sentido. Que desistem de serem «um funcionário apagado», «um funcionário triste» e se libertam. Por eles, pelos seus sonhos e, sobretudo, pelos outros. As crianças e os jovens agradecem. É o que importa no final do dia. Isso nem os dentes mais férreos das engrenagens são capazes de esmagar. Desde que a alma acompanhe a mão... desde que «as palavras cruzadas do meu sonho» não sejam «palavras soterradas na prisão da minha vida»...

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