«And some people say that it's just rock 'n' roll. Oh but it gets you right down to your soul» NICK CAVE

terça-feira, abril 18, 2006

75. “Crash”: três leituras


“Crash” é um daqueles filmes independentes, de baixo orçamento que, não fosse o momento político mais conservador que vive a América, veríamos apenas em circuitos alternativos, em salas como o Cine Max, no Funchal. Assim como “Good Night, and Good Luck” de George Clooney ou “Brokeback Mountain” de Ang Lee, só para dar exemplos premiados pelos Óscares. É a massa crítica da Hollywood liberal a reagir.

Ainda bem que o grande público se pode confrontar com cinema que evita aquele efeito de normalização e da previsibilidade, que surpreende e desafia o espectador, que questiona e faz reflectir, que nos faz crer que estamos perante o real e não da ficção, que relativiza ou faz em cacos o conforto e a rotina das nossas vidinhas, que nos coloca a nu perante a complexidade e as contradições da realidade.

RETRATO HUMANO
1. Parece-se demasiado com a vida, parece-se demasiado connosco, é demasiado humano.
A dicotomia bem e mal é destruída. “Crash”, traduzido como “Colisão”, abraça a complexidade humana e evita visões unidimensionais.
Os maus são também bons e heróicos, os bons são também maus e capazes do pior: basta serem colocados perante determinados contextos. As pessoas são condicionadas, por vezes de forma brutal, pelas situações em que se vêem envolvidas, que não controlam. Não é só a vontade pessoal ou a natureza de cada um que determinam os eventos. Somos capazes de nos rever um pouco em várias das personagens.
Os contextos complexos e radicais condicionam, pois, as nossas reacções. Se lhes juntarmos esse material tão volátil que são as emoções criam-se situações potencialmente explosivas e incontroláveis.
A gestão emocional é fulcral. Para que sentimentos e situações complexas não nos conduzam ao abismo, ao irreparável, ao irreversível. Pensar antes de agir. Pois, é fácil de dizer.
Como dizia António Lobo Antunes, recentemente, numa entrevista à TV2, temos em nós uns cães negros que se degladeiam. Há forças contraditórias e antagónicas que colidem. As pessoas não são apenas uma coisa. Elas são multidimensionais, multifacetadas, capazes de surpreender para o bem e para o mal.

RETRATO SOCIAL
2. “Crash” é um retrato social, além do retrato humano. É muito ostensivo o conflito interracial nesse caldeirão que é Los Angeles. Há muita discriminação. Todos se temem uns aos outros, numa tensão, desconfiança, stress e agressividade permanentes. Há uma violência latente, que tem explosões ao mínimo pretexto.
Há muita desumanidade no sentido de que as pessoas constróem muros à sua volta, como autodefesa, que as isola dos outros. Uma série de factores leva à criação de barreiras e não de pontes, de isolamento e não de comunicação, de ruptura e não de convivência.

INFELICIDADE CÓMODA
3. Outro aspecto que retirei do filme é o facto de as pessoas se habituarem a ser comodamente infelizes, reaccionárias e incapazes de mudar a sua vida para melhor e fazer alguma coisa para alterar o estado de coisas à sua volta.

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