«And some people say that it's just rock 'n' roll. Oh but it gets you right down to your soul» NICK CAVE

quinta-feira, agosto 24, 2006

36. Madeira versus República I: onde começa o justo e acaba o empolamento?

Como analisar o diferendo Madeira-Lisboa sem se arriscar a ser chamado de colaboracionista da República, por um lado, ou de autonomista que só pensa "sacar" dinheiro da República, por outro?

Têm-se levantado tempestuosas vozes alegando colonialismo, centralismo, discriminação, ataque político-ideológico à Autonomia e afogamento financeiro por parte da República relativamente à Madeira, que coloca «em causa a unidade nacional e a solidariedade devida».
Alguns artigos de opinião sobre o assunto são mais ricos em diatribes e emotividades do quem em factos e explicitações, em específico e em concreto, do alegado colonialismo, centralismo, discriminação, ataque, asfixiamento e «hostilização da Região».

Todavia, como analisar esta realidade do diferendo Madeira-Lisboa, a partir de dados disponíveis publicamente, sem se arriscar a ser chamado de colaboracionista da República, por um lado, ou de autonomista que só pensa "sacar" dinheiro da República, por outro lado?
Não há forma de o fazer quando uma determinada cultura só admite a compreensão apenas de um dos pontos de vista, neste caso o ponto de vista da Madeira. Não é tolerada a análise distanciada e intelectualmente honesta que procure confrontar, racionalmente, os argumentos das várias partes. A cultura do "se não é a favor é contra nós", com manias de perseguição, que não conhece meio-termo e assume que uma das partes tem sempre razão, impossibilita leituras moderadas. Geralmente, a razão não está toda de um só lado.
E as metodologias "batalha campal" e "campanha de ódio" são utilizadas como instrumentos para passar cortinas de fumo e suscitar a emotividade que impossibilitem a análise/debate racional dos factos e argumentos. «Importa ser lúcido e honesto, independentemente das opções ideológicas e políticas», como referiu Guilherme Silva (Diário de Notícias da Madeira, 13.07.2006). Vamos a isso.

CERNE DA QUESTÃO
Todo o contencioso acaba por ir bater nos «milhões de contos que entram a menos na Madeira» a partir do Orçamento do Estado: alega-se que virão menos 128 milhões de euros. Diz-se que é um «garrote financeiro». Aqui já se chega ao cerne da questão.
Falta demonstrar, em acções e casos concretos, que está em curso uma discriminação financeira do Estado português relativamente à Madeira e que está em causa o princípio da solidariedade para com a Região. Evidenciar com argumentos e justificações - até agora só um dos lados (os de cá) se tem expressado sobre o assunto.

PREÇO
Esse alegado ataque, supostamente, procurará também atingir a Autonomia («inviabilizar o sistema político autonómico que o Povo Madeirense conquistou», retirar o «poder de decisão sobre o nosso futuro» e até «voltar a transformar [a Madeira] em “distrito”»), o Governo Regional e favorecer o Partido Socialista da Madeira nas eleições regionais de 2008. Alega-se, por cá, ser real a «instrumentalização político-partidária do Estado contra a Região, pelo Governo PS».
Cabe perguntar: a Autonomia deixa de ser viável sem determinado montante nas transferências do Orçamento de Estado? Há que quantificar essa solidariedade «devida», justa, de direito. Quanto vale então a Autonomia? Qual o montante que viabiliza e o que inviabiliza a Autonomia? A partir de que montante a Autonomia e a Região se consideram respeitadas?

PRIMEIRO, há que distinguir entre tiques de colonialismo, centralismo, discriminação e a disciplina, o rigor e contenção financeiras que estão a tocar a todos no país.
A nova Lei de Finanças Regionais, segundo os primeiros fumos, vai nesse sentido, de que a Lei de Finanças Locais é já um exemplo (penalizando excesso de limites de endividamento ou fazendo com que as receitas das autarquias acompanhem o nível das receitas do Estado). De que a reforma na Administração Pública é outro exemplo.
Esperemos que a contenção se faça também sentir em diversas empresas públicas nacionais, endividadas e com passivos acentuados.
As autarquias e a administração pública, para já, não ficaram de fora desse esforço de poupança/corte. A Madeira não estará só no apertar do cinto (veremos quais as razões do alegado aumento das verbas para os Açores).
Se a apertada política de contenção financeira no Estado é o caminho certo, não nos cabe aqui ajuizar. Há quem diga que sim, há quem diga que não. Há quem diga que o rígido controlo do déficit é essencial (a maioria dos economistas) e há quem opine que asfixiará ainda mais a economia.

SEGUNDO, há que distinguir entre disciplina e contenção financeiras na despesa pública e estar «em causa direitos fundamentais dos portugueses que vivem na Região Autónoma da Madeira» (Jaime Lucas, DN 30.07.2006), nomeadamente o tal princípio da solidariedade.
Quanto à República colocar em causa «direitos adquiridos» (= verbas adquiridas) pelas Regiões, lembre-se que os cidadãos deste país já estão a sentir na pele, na actual crise financeira do Estado, o que é perder direitos adquiridos, independentemente da sua vontade e da sua razão face a razões mais "fortes".

TERCEIRO, há que distinguir entre a reivindicação e luta legítimas - com o qual os madeirenses concordam, independentemente do seu pensamento político, para obter o melhor (mais) possível para a Madeira, no relacionamento financeiro com a República - , e a metodologia dessa reivindicação: feita através de um discurso ofensivo, difamatório de pessoas, da demonização dos argumentos da outra parte, do apelidar de inimigos da Madeira e colaboracionistas todos aqueles que discordem, da chantagem, do acenar com o fantasma do separatismo, entre outros aspectos.
Uma coisa é a razão que pode ter a Madeira na sua reivindicação e outra coisa é a forma como pretende fazer valer essa razão. Porque certas formas de actuação (a metodologia da "batalha campal", por exemplo) são usadas, geralmente, para esconder a falta de argumentação. Certas actuações não conquistam solidariedade na opinião pública, facilitando as posições contrárias. Falar "grosso" pode resultar em certos contextos mas não em todos.

QUARTO, há que distinguir entre o estar «em causa direitos fundamentais» dos madeirenses e princípios basilares no relacionamento Madeira-República e estar em causa, por exemplo, a sustentabilidade de um determinado modelo de desenvolvimento, demasiado assente no endividamento e em obras públicas, ou a política desportiva seguida na Região, sustentada pelo financiamento público do desporto profissional através da conhecida política de subsídios.
Denunciar e provar alegadas atitudes centralistas face à Autonomia não pode incluir a subscrição, em toda a linha, de políticas, como a desportiva, nem de gestões despesistas, como os gastos dos assessores técnicos da Secretaria Regional do Turismo, denunciada pela Tribunal de Contas.
Ser autonomista e até bairrista, este no bom sentido, não tem de incluir a subscrição cega de tudo e qualquer política do Governo Regional. Alguns artigos não têm tido esse cuidado, quando denunciam e atacam os alegados tiques centralistas, subscrevendo, mesmo que tacitamente, todas as atitudes e políticas de cá. Como se uns tivessem toda a razão e os outros nenhuma. Como se as políticas e decisões da Autonomia fosse o céu e as políticas e decisões da República fossem o inferno. Como se cá existisse sempre boa fé e lá existisse sempre má fé.

Chegamos então à Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto, usada repetidamente como exemplo mais flagrante (além da já referida Lei de Finanças Regionais, que ainda não está publicada - vide mais adiante) da discriminação, colonialismo e centralismo:

Um. Se há tiques centralistas e ingerência nas competências da Madeira que, constitucionalmente, não podem ocorrer, há instâncias próprias na democracia portuguesa para o verificar e anular. Se está em causa o princípio da continuidade territorial ao fazer-se os clubes desportivos da Madeira assumirem os custos das deslocações para o exterior, enfim, haverá instâncias próprias para o provar e desbloquear. Se a República não pode impedir o financiamento de clubes profissionais com dinheiros públicos na Madeira por, alegadamente, violar o artigo 40º do Estatuto Político-Administrativo da RAM, há instâncias para o arbitrar. Se se acha que o desporto é matéria de interesse específico da Região, alguém dará razão legal. Se as causas e as reivindicações são justas, se é possível evidenciar a justeza das posições de fundo defendidas pela Autonomia da Madeira, mais tarde ou mais cedo serão vencidas. Com racionalidade. O ruído, a fulanização, a ofensa e a emotividade não serão bons conselheiros nem boas estratégias.

Dois. Dá a impressão que o problema principal nesta questão da Lei de Bases do Desporto tem mais a ver com o facto do Estado, Regiões Autónomas e Autarquias não poderem atribuir apoios aos clubes desportivos profissionais como até aqui - o Decreto Legislativo Regional de 12/2005 de 17 de Julho, que aprovou o regime jurídico de atribuição de comparticipações financeiras ao associativismo desportivo na Região, fica "ilegal". Será a questão desses apoios mais do que o princípio da continuidade territorial aplicado às deslocações de atletas para o exterior.

Três. Para o comum mortal, na sua vida quotidiana, o fim do financiamento público do desporto nem aquece nem arrefece. Aliás, há muitos madeirenses contra esse financiamento público de clubes profissionais e a excessiva contratação de atletas estrangeiros. Se os clubes madeirenses ficarem a meia tabela dos campeonatos nacionais, que consequências tem isso na qualidade de vida dos madeirenses? Na educação, na saúde, no apoio social, no desenvolvimento do tecido produtivo regional, na felicidade dos habitantes desta ilha? (Sabe-se ainda que a maioria dos Madeirenses apoia o seu clube nacional - Benfica, Porto ou Sporting, normalmente - quando joga contra o Marítimo ou o Nacional...) Se as equipas regionais tiverem, sobretudo, atletas madeirenses, aí sim, estar-se-á a investir na população local e no atleta regional. Ter equipas repletas de estrangeiros a levar dinheiro para fora da Madeira tem muito pouco de autonómico e regionalista... Sem perguntar se a economia da Madeira tem dimensão e produtividade que permita sustentar a actual política desportiva. Sem perguntar se existe verdade desportiva numa competição em que uns clubes contam com financiamento público e os outros são financiados pelos sócios.

Por ordem cronológica, chegamos então à Lei de Finanças Regionais, ainda em fase de preparação, que tanta polémica tem suscitado na Madeira, neste mês de Agosto. Sem repetir o que já para trás ficou dito, realce-se o seguinte:

Um. Se, alegadamente, os Açores vão receber mais dinheiro, na nova Lei de Finanças Regionais, há que perceber porquê - maior número e dispersidade das ilhas? insularidade acrescida? menor PIB? menor grau de desenvolvimento?
Se a contenção é para todos, por que aumentam as verbas para os Açores? Esse aumento para os Açores ocorre à custa da diminuição das verbas para a Madeira? Terá de assentar em razões objectivas.
Essa diminuição de dinheiro para a Madeira é apenas conjuntural? Colocará em causa os princípios no relacionamento entre a Região e a República?

Dois. Será por a Madeira ter sido insistentemente propagandeada como muito desenvolvida, à frente do continente, com uma economia sustentada e um bom PIB elevado (riqueza empolada pela não distinção - para a indução de uma dada leitura política - do peso que tem o Centro Internacional de Negócios no PIB regional), que agora poderá servir de argumento para uma transferência menor do Orçamento de Estado? Andámos a cavar a nossa sepultura? Chegámos ao ponto, recentemente, de crer na autoviabilidade da Madeira, desvalorizando as transferências de dinheiro do Orçamento de Estado...
Como escreveu Jorge Freitas Sousa no Diário (20.08.2006), «ao longo de décadas, quem se atrevia a dizer que o "off-shore" falseava o PIB regional e seria motivo de perda de fundos europeus (como se verificou) era um traidor. Agora, pasme-se, a desculpa do "off-shore", que faz crescer artificialmente (com que proveito?) o tal PIB, é esgrimida para exigir mais dinheiro a Lisboa. Santa coerência!»
Aguardemos pelo que a República terá a dizer sobre tudo isto.

CONCLUSÃO
Se a solidariedade, a insularidade e a ultraperiferia são princípios que justificam mais verbas (direitos) para as Regiões, mesmo na altura de crise financeira do Estado (uma situação «complexa e muito grave», como reconhece o presidente do Governo Regional - DN-M 25.07.2006 -, ao ponto de se dizer que «Portugal está falido»), aí estão causas que valem por si próprias e que devem sustentar a luta, racional e democrática, junto das instituições democráticas e constitucionais do país.

Ganhar razão nos sítios certos e sem "batalhas campais", "campanhas de ódio", emotividades e esoterismos como as ameaças de queixas na ONU ou a comparação, da alegada atitude hostil to Estado, a Salazar e, por conseguinte, a um regime fascista.
Há coisas (atitudes e gestões) que fazem mais a Madeira perder do que ganhar razão (reivindicativa e jurídico-constitucional) e poder negocial, junto da opinião pública nacional e nas instituições do Estado.

Há que provar a razão, a validade e a justeza que pensamos ter nas nossas reivindicações. Se a razão é clara e sustentada a outra parte terá dificuldades em justificar opções contrárias. Há poderes, além do executivo, que regem o país.

Qualquer autonomista deseja que a Madeira tenha a maior das razões, se as tiver de sua justiça. Qualquer madeirense quer o melhor para a Madeira, se assim for possível conquistar. Não depende unicamente da nossa vontade, estamos a ver.
Não somos autosuficientes nem vivemos sós. O princípio da solidariedade será passível de aplicar-se também a nós relativamente a zonas menos desenvolvidas do país.
Quanto ao argumento de que a República explorou as riquezas da Madeira durante séculos, bem, se as ex-colónias começassem a cobrar dinheiro pelas políticas do passado, Portugal teria de pagar ao Brasil, a Angola, a Moçambique, entre outros, fortunas incalculáveis...

Uma dúvida:
A União Europeia deu um corte à Madeira em metade dos fundos. Muito mais grave, portanto, que o possível e alegado corte ao nível das transferências do Orçamento de Estado: na repartição desse dinheiro entre Açores e Madeira, a nossa ilha passa dos 49,38% actuais para 42,10%, segundo as contas publicadas pelo Governo Regional.
Por isso, ainda ninguém se lembrou de dizer que a União Europeia estava a conspirar contra a Madeira, a sua Autonomia e o seu Povo? De fazer uma queixa na ONU? Se estão em causa princípios e direitos fundamentais... e muito mais verbas do que aquelas em consequência da Lei de Finanças Regionais...

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