O 4º Festival de Cinema do Funchal arrancou com a mostra do novo filme de Fernando Meirelles, Blindness ou Ensaio sobre a cegueira, baseado no romance com o mesmo título de José Saramago.
A casa esteve cheia e a procura justificou uma segunda sessão, não prevista, para o dia de hoje.
E o filme? Antes de mais, muito fiel ao livro no essencial, na substância da narrativa do escritor português.
É um filme que, a meu ver, expõe a natureza humana. Daquilo que é capaz o Homem em situações extremas e de sobrevivência. Não olha a meios: o civismo, a humanidade, a moral e o bem-comum são secundarizados e até olvidados. Ficam "cegos" para estes valores. A sobrevivência justifica até matar quem se aproveita da cegueira para explorar e desumanizar.
Por isso, a mulher do médico diz: "The only thing more terrifying than blindness is being the only one who can see." Isto é, estar consciente do que se está a passar. Os anestesiados, cegos e inconscientes não sofrem, não se arreliam.
Mesmo as pessoas civilizadas e educadas regressam aos seus instintos mais básicos e primitivos. Há um conflito ou tensão entre civilização e sobrevivência/poder, grupo e indivíduo, razão e emoção, moralidade e imoralidade, humanidade e desumanidade.
Neste sentido, faz lembrar muito a famosa narrativa Lord of the flies, de William Golding, também Nobel da Literatura. Esta obra teve duas adaptações ao cinema: Lord of the Flies (1963), realizado por Peter Brook e Lord of the Flies (1990), realizado por Harry Hook.
No entanto, a obra de Saramago deixa, no final, uma réstea de esperança, optimismo e redenção. O pessimismo realista do escritor português sobre a natureza humana, ao contrário de William Golding, deixa espaço para algum optimismo. Um optimismo reservado e limitado, porque se resume a um dos grupos de cegos.
Há cegos que, postos à prova pela cegueira branca, se tornam melhores, mais próximos, mais solidários, porque percebem que têm de contar com o grupo, a comunidade, com o outro, para sobreviverem e serem felizes.
O grupo de cegos protagonista do filme/livro passa como que a ver mais e melhor. A cegueira branca obriga-os a olhar para dentro de si, a valorizar outras coisas, a aproximarem-se dos outros seres humanos face à sua interdependência. A cegueira branca permite esquecer (não ver) diferenças de raça ou classe social, mas a ver o que é autêntico e mais valioso em cada ser humano.
No final, quando começam a recuperar a visão, a mesma mulher do médico, que nunca cegou, afirma algo do género: "I think I am going blind".
Ainda:
O Caderno de Saramago
Página oficial de Blindness
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