«And some people say that it's just rock 'n' roll. Oh but it gets you right down to your soul» NICK CAVE

segunda-feira, março 07, 2011

THE WALL (2): o conceito

O que tem The Wall a ver com a natureza humana, Jean-Paul Sartre, Robert Fisher ou o muro entre Israel e a Palestina? Read on...
O conceito, o fio condutor ou ideia, que percorre The Wall é simples. Nas próprias palavras de Roger Waters, trata-se da «história de um jovem que se isola devido ao medo que tem das outras pessoas e relacionamentos.» Aos poucos, esse personagem vai construindo, tijolo a tijolo, um muro entre si e os outros.

Segundo Jean-Paul Sartre, «o inferno são os outros», isto é, fonte permanente de contingências e que impossibilitam a concretização dos projectos individuais, colocando-se sempre no seu caminho. Apesar disso, o indivíduo não pode evitar a convivência. Só esta convivência é capaz de lhe dar a certeza de que está a fazer as escolhas que deseja, em contraponto com os projectos diferentes dos outros. Sem os outros, o seu projecto ou a sua missão não faria sentido.

The Wall traduz a «ideia de que nós, enquanto indivíduos, geralmente achamos necessário evitar ou negar os aspectos dolorosos da nossa existência», diz Roger Waters, fazendo com que muitas vezes utilizemos esses aspectos difíceis e traumáticos como «tijolos num muro atrás do qual podemos por vezes encontrar refúgio, mas que nos pode tornar emocionalmente emparedados».

O mesmo Waters diz ser uma ideia com a qual muitos de nós se debatem. Tem a ver, simplesmente, com a nossa condição humana. E é relevante que um álbum tão difundido, no âmbito da cultura popular, tenha abordado e problematizado essa ideia tão profunda sobre a natureza humana. Daí a sua enorme pertinência, consistência e profundidade como conceito. Abordado de forma simples, mas poderosa e inquietante. Toca-nos, desperta-nos. Porque é uma história sobre cada um de nós, que carregamos as nossas cargas (tijolos).

O baixista dos Pink Floyd foi empurrado para The Wall decorrente de acontecimentos na sua vida, pessoal e artística (a aprofundar num próximo post). Se calhar sem a consciência plena, então, que tocava um dos aspectos mais profundos da nossa condição enquanto seres humanos.

Em defesa, tendemos a nos fecharmos, a nos isolarmos dos outros, a construir muros ou a envergar armaduras que nos protejam. Assim é o instinto. Mas o muro ou a armadura que nos protege, também nos aprisiona («in perfect isolation here behind my wall» no tema "Waiting for the Worms") e nos debilita (mata) a longo prazo. O que parece ser o refúgio ou salvação, torna-se na causa de alienação e desequilíbrio (o sujeito em The Wall torna-se autoritário).

«[A] sua armadura [muro] impedia-o de sentir o que quer que fosse, e usava-a há já tanto tempo que se tinha esquecido de sentir as coisas sem ela», diz o livro O Cavaleiro da Armadura Enferrujada, de Robert Fisher. «Todos nós estamos presos numa armadura similar». Logo a abrir em "In The Flesh" ouvimos: «If you wanna find out what's behind these cold eyes / You'll just have to claw your way through this disguise».

Colocamos a armadura por medo, tal como refere Roger Waters no primeiro parágrafo deste post. Por medo, o sujeito veste um uniforme e incarna uma figura fascista para os outros. Mas, no fim, no tema "Stop", resolve despir essa armadura (uniforme): «wanna go home /Take off this uniform».

«A luta consistirá em aprenderes a gostar de ti próprio» e tal «começará pela aprendizagem do conhecimento de ti mesmo», diz ainda o livro de Robert Fisher. No tema "Comfortably Numb" acontece essa tomada de consciência: «This is not how I am / I have become comfortably numb.»

Os tijolos em The Wall é a ausência do pai («Daddy's flown across the ocean / Leaving just a memory»), o professor sarcástico («We dont need no thought control / No dark sarcasm in the classroom»), a mãe sufocante («Mother's gonna put all her fears into you. / Mother's gonna keep you right here under her wing»), a relação deteorada com a mulher («I have grown older and / You have grown colder and / Nothing is very much fun any more»), o stress do estilo de vida do próprio («If you should go skating / On the thin ice of modern life [...] / Don't be surprised when a crack in the ice / Appears under your feet»), entre outros.

São as causas do medo, da dúvida e da culpa («guilty past» mencionado em "Run Like Hell"), que funcionam como exemplos (cada pessoa tem os seus "tijolos") do conceito abrangente: «All in all it was all just bricks in the wall.»

Trata-se de um conjunto de relações com os outros, e consigo próprio, decorrente não apenas das características dessas pessoas, mas também decorrente do percurso e acidentes da vida. O sujeito acaba por construir um muro em seu redor e confinar-se ao isolamento. É assim que acaba a primeira parte do The Wall (disco 1).

Após a construção do muro, o sujeito consegue ao menos ter consciência do seu estado de isolamento e envia um grito de ajuda no excelente e melancólico "Hey You", que abre a segunda parte do álbum. E que diz «don't give in without a fight». Mais adiante outro tema refere «I've got a strong urge to fly / But I got nowhere to fly to», a dar conta de uma busca que tem de ser interior.

O conceito destaca mais o passar as culpas para os outros, do que o assumir de responsabilidades, mas compreende-se que o ângulo de abordagem é individual (eu). Todavia, em "Stop", o sujeito pergunta: «Because I have to know / Have I been guilty all this time?» É o ponto de partida para a transformação.

Mais do que dos outros, como salienta a história de Fisher, nós mesmos «criamos barreiras para nos protegermos de quem pensamos que somos. Até que um dia ficamos presos atrás das barreiras e não nos conseguimos libertar.»

E a vida tem de continuar (como diz a faixa "The Show Must Go On", no disco 2). Embora a temática e ambiência do álbum seja muito densa, sombria e melancólica, no final há lugar para a esperança quando é derrubado o muro (libertação), barreira entre si e os outros e entre si e o eu verdadeiro. Depois de muita luta (o sujeito torna-se na tal figura autocrática em "In the Flesh"), análise e vontade interior. É possível, afinal, quando conscientes e quando queremos, derrubar os muros (livar-se das barreiras) que nos isolam e nos lixam o equilíbrio.

Baixar as defesas e abir o peito permite derrubar o muro, lê-se em "The Trial": «Since, my friend, you have revealed your / Deepest fear, / I sentence you to be exposed before / Your peers. / Tear down the wall!»

Nota:
Segundo Waters, numa visão mais abrangente, o conceito por detrás do The Wall pode ser encarado como uma «alegoria sobre o que se passa no cenário político, em que as nações são encorajadas pelos seus líderes a ter medo das outras nações.» Que chega ao ponto de se erguerem muros físicos: o muro de Berlim ou o muro entre Israel e a Palestina. O que diz respeito ao nível individual pode ser transporto para a esfera colectiva.

O tema "Bring the Boys Back Home" é alusivo aos conflitos armados, que acabam por deixar órfãos. Roger Waters foi-o com apenas meses de idade, já que o pai morreu na Segunda Grande Guerra.

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