«And some people say that it's just rock 'n' roll. Oh but it gets you right down to your soul» NICK CAVE

domingo, agosto 04, 2013

«Povo que se adapta, que se conforma» e (ainda) despreza a cultura

Ruben Alves, luso-francês realizador da comédia Gaiola Dourada, um olhar sobre os portugueses. Diz a rir coisas lixadas.
image origin

Ainda a respeito de declarações de Ruben Alves na Visão #1063 (18 a 24 de julho), o jovem realizador luso-francês responsável pelo filme Gaiola Dourada, gostaria de destacar o seguinte sobre o seu olhar sobre o comportamento de nós portugueses, como colectivo, com os seus aspetos positivos e outros menos:

«É um povo que se adapta, que se conforma. Nos cafés, sim, estão sempre a mandar vir. Mas são das poucas comunidades que nunca reivindicam nas ruas, por exemplo...»

E mais adiante diz: «O povo português tem a autenticidade de ver a vida passar. É muito acomodado, encara a vida como uma fatalidade, dizem "é a vida...", "é assim..." Mas, por outro lado, é um povo que tem uma forma delicada e carinhosa de viver. É muito tocante sentir isso. Basta-lhes o sol, o café, a comida sobre a mesa... São muito neutros».

Ser conformado, aceitar e adaptar-se à realidade, que não está no nosso controlo e que não se pode mudar, é uma vantagem, não negamos, em termos de paz e serenidade interiores. Bastar-nos o essencial (o sol, o café, a comida sobre a mesa) também tem as suas vantagens (contentar-se com pouco e apreciar as coisas mais simples, em tempo de crise e quando não se tem muitos recursos, contribui para a paz interior e a paz social). Embora a contemplação seja algo importante e positivo, ver a vida a passar, ser acomodado e não intervir... isso é outra coisa. Por isso somos pobres, dirão alguns. Não somos protagonistas da História. Não somos criadores.

E isto tem a ver com o passado histórico e com a cultura/conhecimento do colectivo português. Como referiu António Nóvoa, numa conferência em 6 de julho, no Funchal, a cultura escolar em Portugal foi “marginalizada” pelo menos até aos anos 60 do século XX, “desprezada não só pelo povo mas sobretudo no interior das elites.” Em simultâneo, “nunca tivemos uma cultura científica”, uma cultura essencialmente de criação de coisas novas. Isto pode ajudar a explicar o nosso conformismo e o ver a vida a passar.

A inteligência e a cultura como grande capital dos povos é um tema “ausente” da sociedade portuguesa durante muitos séculos, como observou Nóvoa. Um povo que esteve “fora da cultura escolar”, isto é, da cultura do conhecimento. Ao ponto de, até muito tarde, se “elogiar o não saber”, a “não escola”, e ver os analfabetos como “simpáticos, simples, humildes sem as ambições da cultura e da escola. A conexão com a cultura escolar e o conhecimento só aconteceu recentemente”. Avançou o dado que há um século havia 80% de analfabetos em Portugal (quatro em cada cinco eram analfabetos, enquanto na maioria dos países europeus o analfabetismo era residual ou inexistente).

Há uma cena da Gaiola Dourada em que o filho diz ao pai, num bar, que vai para casa estudar e o pai responde isto: "Já disse que não foste feito para os estudos". Mais do que isso, o progenitor invoca o exemplo do Pauleta e diz que o "futebol é o futuro"...

É ilustrativo, por um lado, da desvalorização e desprezo endémicos da cultura, do estudo, do conhecimento, da atividade intelectual, e, por outro lado, da valorização de meios, como o futebol, para fazer fortuna rápida e facilmente. Uma cultura do superficial, do show off, do aparecer e ser visto. Felizmente, nas últimas décadas muito disto se inverteu, mas ainda persiste. Leva várias gerações.

(E depois dá estas notícias que espelham a dura realidade, que se verifica também no País, e que dispensa mais comentários: «Os alunos portugueses na Suiça obtêm os resultados escolares mais baixos entre as comunidades estrangeiras» [Revista Mais - Diário de Notícias da Madeira 04.11.2007]; «Portugueses no Luxemburgo são os campeões do abandono escolar» (título no Público de 04.01.2010); «A comunidade portuguesa no Canadá é uma das comunidades étnicas com maiores taxas de abandono e subescolarização» [Diário de Notícias da Madeira 23.8.2007]; «Entre as minorias étnicas, as crianças de origem portuguesa são aquelas que têm os piores resultados escolares» [na Inglaterra, área de Londres - Diário de Notícias da Madeira 2.2.2005].)

E não se pense que é um problema com raiz no povo sem cultura. O conferencista já citado, António Nóvoa, deu conta também que o parlamento português, no século XIX e XX, está “repleto” de discursos “muito bem elaborados” de que a “ciência não faz falta nenhuma a Portugal”. O argumentário principal desses discursos é a especificidade do homem português. Somos “diferentes do resto do mundo”, referiu, somos mais “inventivos”, “adaptáveis, maleáveis, com plasticidade”, fomos “feitos para intermediários, não fomos feitos nem para estudar nem para criar.”

É como se estas aptidões ou predisposições fossem algo dos povos do Norte, com clima mais agreste e que se dedicam a estudar e a fazer ciência. A nossa vocação é estarmos “atentos ao que se faz lá fora e quando estiver feito a gente importa e utiliza e adapta.”

Caricatural? Foi escrito milhares de vezes por responsáveis pelo rumo do País, inclusive por alguns dos nossos “melhores filósofos”, que “elaboraram e saturaram ad nauseam” este tipo de “construção filosófica e sociológica sobre a ideia do homem português.”

Nóvoa cita António Sérgio num prefácio ao livro “O mundo que o português criou” do sociólogo Gilberto Freire, que a única coisa que não percebeu na obra é que se o povo português é assim tão adaptável e plástico, “porque é que nunca nos adaptámos à Europa”, isto é, a uma “cultura escolar e científica?” Um continente que se desenvolveu pela “razão, pela inteligência, pela capacidade de criar”.

“Creio que, se não percebermos que temos de romper com esta maneira de pensar, a nossa identidade e a nossa cultura, dificilmente conseguiremos avançar muito para o futuro”, colocou deste modo o referido orador, apontando o rumo: “afirmar a ideia de criação e de ciência” como ideias centrais para os nossos tempos. Precisamos de um “maior repertório” de coisas para pensar, que nos possibilite sermos “mais criadores” e ir “além de determinadas possibilidades”. Isto porque o “poder criador não está suficientemente afirmado na sociedade portuguesa”.

Daí a necessidade de “construirmos um País que tenha o conhecimento como ponto central da sua atividade” e que essa “não foi a nossa identidade histórica”, que se construiu “contra o conhecimento.” Com a ideia que o conhecimento “se produzia algures e que nós éramos apenas uma espécie de intermediários”, isto é, “não éramos os criadores do conhecimento e da cultura.”

Não fomos feitos para criar? Ruben Alves foi: «na minha vida a prioridade é criar, seja no teatro, no cinema, na televisão, na fotografia. Criar emoções e fazer coisas» (mais aqui, em www.7nema.net). Aí está um luso-francês que fez o corte com aspetos menos positivos da (in)cultura portuguesa, que vem desde há séculos. A rutura com esse destino através da cultura, do conhecimento e do poder criador, fazendo uma revolução intelectual, é importante.

O filme de Ruben Alves é fluído, deixa-nos bem dispostos mas, atenção, faz a análise socio-cultural e passa a mensagem. Diz a rir coisas lixadas. Mas com classe e finesse. Consegue apreender o essencial, com um olhar crítico mas terno e afectivo sobre os portugueses. Tem a vantagem de ser um olhar de fora, por ser luso-francês. Très bien. Bravo!

Ainda:
Crianças-Rei e a Gaiola Dourada

Sem comentários:

Enviar um comentário