«And some people say that it's just rock 'n' roll. Oh but it gets you right down to your soul» NICK CAVE

domingo, fevereiro 25, 2018

«Gregarismo é opcional»: há outras vias para a felicidade

Há a «omnipotente convicção de que o ser ideal é gregário, alfa, e se sente confortável sob as luzes da ribalta» (photo: Leonardo DiCaprio num still do filme The Wolf of Wall Street)

Uma pessoa pode ser gregária em alguns momentos ou em círculos mais restritos, ou mesmo em certas fases da vida, e ser não-gregária nos restantes ou maioria dos momentos/fases da sua vida. Não é uma questão de preto ou branco. O contraste estabelecido entre gregário e não-gregário visa tornar clara a análise. Obviamente, a defesa da via não-gregária, ou maioritariamente não-gregária, é contra-corrente e minoritária, e é a tese que defendemos aqui, para quem opta por esse caminho, por se sentir mais livre e feliz desse modo.

Susan Cain afirma que o «amor é essencial, o gregarismo é opcional» (p.355: Silêncio, o Poder dos Introvertidos num Mundo que Não Pára de Falar - 1.ª edição: 2012), isto é, há vida para além do gregarismo. No arranque da referida obra, escreve: «disseram-nos que ser [...] feliz é ser sociável» e «vivemos com um sistema de valores a que chamo o Ideal Extrovertido - a omnipotente convicção de que o ser ideal é gregário, alfa, e se sente confortável sob as luzes da ribalta» (pp.18-19).

Gregarismo é a tendência para desejar sempre a companhia de outras pessoas. É algo apelativo (notado, glamoroso) e estimulante, mas tido como o ideal, superior e garante de sucesso e popularidade (os outros beneficiam). Até nos locais de trabalho se passou, em dado momento, nos anos 70, a organizar os trabalhadores em equipas/grupos (New Groupthink), como chave para o sucesso: como se a criatividade e o desempenho intelectual se devessem só ou sobretudo ao gregarismo. Pelo contrário, como afirmou Agustina Bessa-Luís, a «solidão favorece a intensidade do pensamento.»

Nas escolas, impõe-se a aprendizagem cooperativa, em grupo, como caminho para o sucesso e como preparação para a cultura de equipa da maioria das empresas. A inspiração e criatividade individuais/solitárias perdem valor, quando se sabe que muitas vezes o desempenho é pior em contexto de grupo: o benefício maior é social ("sozinho, um homem ganha espessura, / em grupo perde-a — e ganha apenas companheiros", escreveu Gonçalo M. Tavares em Uma Viagem à Índia, p.268, Canto VI - 56, Editorial Caminho 2010, 1.ª edição) e não ao nível da criatividade, pensamento, eficiência ou produtividade. Seja nas escolas ou nas empresas. Contudo, a criatividade acaba por resultar muitas vezes de um vai-vem entre o tempo não-gregário e gregário (que pode ser a interacção apenas com uma outra pessoa, uma pessoa que faça a diferença).

O gregarismo pode tornar o grupo mais forte (capacidade de sobrevivência), mas não necessariamente mais inteligente, sensível ou altruísta (na hora do aperto, cada um acaba por buscar a sobrevivência individual). Por isso, preferimos a livre colaboração entre indivíduos, livres, em alternativa ao contexto de pressão do grupo, quando é uma formatação e uma imposição. Não será por acaso que os regimes ditatoriais apostam no colectivismo e no gregarismo.

Estamos formatados para o convívio (e a procriação) como a razão da existência humana e o caminho para a felicidade. A recusa desta imposição ou dependência não significa não gostar de estar com as pessoas. Bem pelo contrário, o gosto de estar com os outros é maior quando resulta de ser livre (genuíno, honesto), e não de uma carência, formalismo, modelo ou obrigação. «A harmonia do comportamento social requer, todos o sabemos, tanto o isolamento como o convívio», lembra Agustina Bessa-Luís. Uns preferem uma maior dose de isolamento, outros de convívio. Importa que tantos uns como outros sejam respeitados na sua opção.

Mais importante ainda, sentir empatia (conectar com o outro, compreender os sentimentos de outrem, ser capaz de colocar-se no lugar do outro), compaixão (sentir o desejo de ajudar quando confrontado com o sofrimento de outra pessoa) ou amor incondicional (amor pleno que não impõe condições ou limites para se amar) não depende de ser mais ou menos gregário, de direita ou de esquerda, religioso ou não religioso, rico ou remediado.

É preciso ainda não esquecer o prazer da própria companhia, bem como o encontro com o universo interior, a criação de espaço para si próprio, para estar consigo mesmo, para balanço, updates e ajustamentos pessoais. Para ainda afinar a sintonia interna/externa, para cultivar a mente e ter uma vida mental activa e culta, para o desenvolvimento pessoal, para o despertar face a outras dimensões da existência, para a transformação e crescimento pessoais. "Estar sozinho não tem de ser o mesmo que estar em solidão", refere Amy Morin, psicoterapeuta. "Pode ser essencial para nos conhecermos melhor a nós próprios". Pode ajudar a criatividade, a produtividade, além de contribuir para uma maior liberdade.

Há quem não queira estar em silêncio perante si mesmo e busque o ruído constante do gregarismo, ou qualquer outra coisa, como fuga. Por lhes ser insuportável o confronto consigo próprio, com a sua realidade, com a sua essência, tal como é, com as suas luzes e sombras, virtudes e insuficiências. Estar consigo próprio e ouvir a sua voz interior, voz essa que não é condicionada e não tem filtros. A solitude é toda eu: há demasiado eu e demasiado espaço. A auto-crítica pode ser implacável. Nem todos aguentam conhecer-se, estar face a face consigo mesmo, apreciar a sua companhia, estar em paz consigo ou gostar de si. O próprio cérebro precisa ajustar-se e adaptar-se ao espaço da solitude, da liberdade, e, por sua vez, à presença do eu, ao face a face com o eu.

Há um preconceito activo contra as vias silenciosas, não-gregárias para a felicidade, impondo-se o gregarismo como via única, como um padrão que muitos se sentem obrigados a aceitar, para se sentirem aceites e enquadrados. O grupo tem um poder de conformismo sobre os indivíduos, que pensam menos por si próprios face à pressão do grupo. Por outras palavras, em grupo corremos maior risco de seguir a manada. Porque ser voz discordante e ficar sozinho, além de ser mais difícil e doloroso, é «activar os primitivos, poderosos e inconscientes sentimentos de rejeição» (p.132), alerta Susan Cain no livro citado.

Ainda a este respeito, as palavras de Fernando Pessoa: «tão regrada, regular e organizada é a vida social portuguesa que mais parece que somos um exército do que uma nação de gente com existências individuais. Nunca o português tem uma acção sua, quebrando com o meio, virando as costas aos vizinhos. Age sempre em grupo, sente sempre em grupo, pensa sempre em grupo. Está sempre à espera dos outros para tudo. [...] Portugal precisa de um indisciplinador. Todos os indisciplinados que temos tido, ou que queremos ter tido, nos têm falhado. Como não acontecer assim se é da nossa raça que eles saem?»

Para os gregários, observa-se a tendência para não verem felicidade nem sucesso em qualquer outra opção, que não implique uma grande necessidade e prática de companhia. Têm medo da solidão e, eventualmente, da liberdade, da individualidade e da independência. O gregarismo e a socialização estão associadas a uma recompensa, à qual os gregários são mais sensíveis do que os não-gregários, que subestimam e são menos dependentes de estímulos e recompensas (socialização, sucesso, estatuto, dinheiro, reconhecimento, entre outros). O gregarismo é tido como natural e positivo, o não-gregarismo como não natural, negativo e, pior, como algo que precisa ser tratado...

Os gregários dirigem, pois, a atenção para fora. Sociável é tido como elogioso, gratificante e recompensador; privado e individual é tido como problemático e abordado como crítica. O tempo ou a opção (tendencial ou dominantemente) não-gregária, de isolamento/solitude, são encarados como incómodo, infelicidade ou uma atitude anti-social. A recusa do padrão dominante do gregarismo é então entendido, por parte dos gregários, como um acto hostil. Os não-gregários tendem a apreciar atributos mais profundos do que os atributos associados à sociabilidade (extroversão, entusiasmo, audácia, arrojo, acção).

As opções não-gregárias são caracterizadas como se lhes faltassem qualidades, como a sociabilidade, e não por qualidades como autonomia, auto-sustentabilidade, independência, liberdade, individualidade, discrição, recato, privacidade, sossego, pausa, silêncio, reflexão, introspecção, contemplação, observação, profundidade, criatividade, cultivo de talentos pessoais, mente activa, concentração, foco, disciplina, intimidade, espaço pessoal, controlo do seu ambiente/tarefas. Com interessantes potencialidades e riquezas, mesmo que mais subtis e menos visíveis, glamorosas, populares ou ruidosas.

Aceita-se a opção não-gregária, excepcionalmente, quando se trata de pessoas com estatuto, sucesso, poder. A estas é concebido o direito de terem a personalidade que quiserem, optarem por um caminho diferente para estar na vida, passarem o tempo conforme desejarem e estarem com quem e quando entenderem.

Os relacionamentos e a socialização podem ser selectivos e restritos aos familiares e amigos mais próximos. Uma pessoa pode desejar ser gregário com umas pessoas e não com as outras, nuns momentos e não noutros. Susan Cain refere: «acarinhe os seus mais chegados e queridos. Trabalhe com colegas de quem gosta e que respeita. Explore novos conhecimentos junto daqueles que se possam enquadrar nas categorias anteriores ou cuja companhia lhe agrada por si própria. E não se preocupe em socializar com todos os outros. O relacionamento faz toda a gente feliz, incluindo os [não-gregários e] introvertidos, mas pense mais em qualidade do que em quantidade

Na verdade, para se ter aptidões sociais e fazer amigos não temos de ser, obrigatória e dominantemente, gregários.

E depois Susan Cain diz o fundamental: «o segredo da vida é colocar-se sob a luz adequada. Para alguns são os holofotes da Broadway ou uma praia ensolarada. Para outros, um candeeiro de mesa» (p.355). Cada qual deve viver da forma que se sente melhor e mais realizado. As pessoas tendem a prosperar e a serem mais felizes quando envolvidas em actividades e contextos que «estão em concordância com as suas personalidades» (p.341).

Ser quem somos é ser livre. Escolhemos como actuamos ou nos comportamos, mas não escolhemos a nossa personalidade. Actividades como ler, ouvir música ou visitar exposições, por exemplo, são actos solitários, que exigem silêncio.

Cada qual toma a dose de que precisa de gregarismo e não-gregarismo, interacção social e solitude, para o seu equilíbrio e bem-estar, sem discriminar quem opta por menos, ou muito menos, quantidade de convívio social: «I like silence; I'm a gregarious loner and without the solitude, I lose my gregariousness» (Karen Armstrong).

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