«And some people say that it's just rock 'n' roll. Oh but it gets you right down to your soul» NICK CAVE

sábado, agosto 03, 2013

Crianças-Rei (petits dictateurs) e a Gaiola Dourada

L'éducation de la petite enfance et des jeunes au Portugal est aussi une grande comédie ... oui oui...

Ruben Alves, o jovem realizador luso-francês, estreou-se com um sucesso: a Gaiola Dourada. Bateu recordes de bilheteira em França com as histórias da comunidade portuguesa emigrante. Estreou em Portugal em 1 de agosto.

Não é o filme em si que é a razão deste texto (depois de ver o filme, quem sabe), mas afirmações do realizador sobre a educação das crianças, na Visão #1063, de 18 a 24 de julho, que prenderam o meu olhar:

«Em Portugal, ao contrário de França, dá-se muita atenção às crianças. Os portugueses gostam muito de crianças.» Constata ainda que «em França, [os adultos] são mais desligados e frios», ao contrário dos «adultos portugueses», que «são tão acolhedores», que concedem a «sensação de liberdade» aos mais novos. Ruben Alves tem subjacente a ideia de que, em Portugal, se estragam as crianças. O que disse logo a seguir às frases citadas só o confirma:

«Em Portugal, o miúdo é rei. Deixam-no fazer tudo...»

A atenção, o acolhimento, a liberdade e o gostar das crianças é positivo nos portugueses, desde que com conta e medida. Pelo que eu vejo em locais públicos e nas escolas, parece que transformar a criança em «rei» e deixá-la «fazer tudo» não é bom, para ninguém. O adulto limita-se a ser um fornecedor ou intermediário das pulsões e desejos da criança, que se julga o centro do mundo pela atenção desmesurada que recebe. O adulto apaga-se para bem servir o seu «rei» (petit dictateur). O adulto dá à criança-rei só o que ela quer e gosta.

Continue a ler para saber qual o resultado desta «realeza» infantil, observado por Eduardo Lourenço, talvez o maior pensador português vivo, ele que faz uma abordagem crítica da realidade, que lhe permite analisar as «motivações menos evidentes no comportamento dos portugueses como povo».

Quando li a referida frase de Ruben Alves, que destaquei em cima, lembrei-me de imediato da «criança-rei» de Eduardo Lourenço, que o registou no livro O Labirinto da Saudade: Psicanálise Mítica do Destino Português, de 1978:

«É pena que Freud não nos tenha conhecido: teria descoberto, ao menos, no campo da pura vontade de aparecer, um povo em que se exemplifica o sublime triunfo do princípio do prazer sobre o princípio da realidade.

Talvez não ficasse admirado se conhecesse, mesmo pela rama, umas das menos repressivas educações infantis que existem e tanto entusiasmaram Sartre quando observou a análoga, a vizinha Espanha. Adulação permanente e espectacular da criança-rei (sobretudo o macho), porta aberta para a suas pulsões narcisistas e exibicionistas, ausência de perspectiva social positiva salvo a que prolonga a afirmação egoísta de si, tais são os mais comuns reflexos da educação portuguesa, defesa natural de mães frustradas nela pelo genérico absentismo e irresponsabilidade paternos.

A contrapartida desta “realeza” que converte cada adolescente (macho) na famosa espécie dos «matões» cara ao nosso Épico, traduz-se numa indefinição do espaço humano que nada limita e define senão a vontade oposta, e dá origem a uma sociedade que, sem paradoxo algum, suscista e impõe uma “violência estatal” que, exteriormente, equilibra essa fictícia realeza individual.

Nada há na educação portuguesa – sobretudo hoje que a também «exterior» mas efectiva pressão ética de ordem religiosa naufragou – que contribua para a existência de um comportamento tanto quanto possível autodeterminado

O que dirá este grande pensador da educação das crianças nas últimas três décadas, que acentuou a «realeza individual» em que só conta o EU (centro do mundo) e mais ninguém?...

Quem se atreve a contrarir a ortodoxia da criança-rei? Quem se atreve a ficar conotado com o autoritarismo ao denunciar as consequências de uma educação permissiva, desculpabilizante e complacente, com a criança como rei?

Sabemos, por exemplo, o que é ter uma «criança-rei» dentro de si ao volante de um carro...Ou um punhado de crianças-rei dentro de um sala de aula... Demasiados pais sabem o que é ter uma criança-rei em casa... Aliás, a casa e a família, que é o primeiro e mais importante espaço de socialização, determinam muita coisa na educação das crianças.

Mas, depois quando crescem, as crianças-rei dão-se conta que o mundo real não funciona assim... que a sua «fictícia realeza individual» é mesmo fictícia (ilusão vendida por adultos) e que tem de se habituar a outro registo alternativo ao «mando em tudo e todos» a que estava (muito mal) habituada.

Mais reflexão sobre o assunto:
Elementos sobre o estado da escola pública: educação infantil (2007)
O pequeno ditador é alguém que aprendeu que pode impor a sua vontade (entrevista de 2007 a Javier Urra, autor de "O Pequeno Ditador")
Por que as crianças francesas não têm déficit de atenção («pais franceses acreditam que ouvir a palavra “não” resgata as crianças da “tirania de seus próprios desejos”)
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