«And some people say that it's just rock 'n' roll. Oh but it gets you right down to your soul» NICK CAVE

terça-feira, agosto 02, 2016

Não ter pressa para não se fazer tarde



Não ter pressa para não se fazer tarde. A articulista Alexandra Costa (JM 2 de Agosto de 2016) aborda uma questão existencial estruturante.

Inspira-me para dar ainda mais passos concretos na desaceleração, na arte da lentidão por uma vida mais tântrica, mais livre, mais nutritiva: com mais tempo para contemplar e saborear. Para ser mais dono do meu tempo (tempo é vida), que não tem preço.

Reproduzimos o conteúdo do artigo:

«Sempre que entro num elevador lembro-me de um texto de Gonçalo M. Tavares que li no Público há uns anos.

A ideia era falar sobre a Europa e o escritor dizia que a síntese do europeu contemporâneo é a do “Homem com Pressa Dentro de um Elevador”. Acho a metáfora perfeita. E onde se lê elevador também se pode ler comboio ou avião. Transportes que fazem linhas rectas. Hoje temos músculos e energia, temos vontade e convicção mas estamos dentro de uma caixa com a velocidade predeterminada. E a caixa nunca tem a velocidade que é necessária à nossa vida. Anda sempre mais depressa ou mais devagar. Não sei. Não acertamos na velocidade. O que sei é que nunca posso ter pressa dentro de um elevador. Nem num comboio nem num avião. Sei que não posso ter pressa para nascer, se nascer demora em média 9 meses. Sei que não posso ter pressa para chegar ao Porto e ver os meus pais, se o Alfa leva duas horas e meia. Sei que só chego à ilha uma hora e meia depois embora tenha muita pressa para visitar os amigos. Sei que me esperam sempre em algum lado. Mas eu tenho de ter tempo para lá chegar. Tenho que cumprir a minha viagem. E a essência da viagem é a lentidão. Não sou uma turista na vida , sou uma peregrina. Quero ter tempo. Tempo livre. Quero ter tempo para plantar uma árvore e vê-la crescer. Embora ela possa viver muito mais do que eu. Tempo para dormir e para acordar devagarinho, para beber um café que não seja para me acordar. Para cozinhar em lume brando porque tudo é mais saboroso devagar. Para ler o meu próprio pensamento. Para ir com o vento. Sem ter opinião certa ou definida. Para ter o privilégio de não concordar com a minha própria opinião. Para conhecer apenas o ponto de partida , não a chegada.

O mundo já está cheio de pessoas que concordam demasiado consigo mesmas. Com as suas doutrinas, ideologias, as certezas de quem acredita que a direcção do vento é sempre a mesma.
Eu prefiro pensar sem destino. E não quero ter pressa de chegar. Quero ser uma “máquina da lentidão” como chama aos livros Gonçalo M. Tavares . Máquinas de lentidão e reflexão. Quero ter tempo para ler “A Vida e Destino” de Grossman, “Guerra e Paz” de Tolstoi. Todos os livros que vou adiando porque implicam tempo e disponibilidade. Quero ter tempo para ver o meu mundo crescer, amadurecer, morrer.

Quero viver numa cidade que não rime com velocidade. Que me deixe atravessar as estradas ao meu ritmo. Os carros podem ser velozes mas a velocidade é sempre controlada pelo condutor.
A pressa não leva a lado nenhum. As coisas acontecem exactamente no tempo em que têm de acontecer.

Mas não posso evitar trabalhar numa rádio. Numa rádio há uma luta natural contra o tempo. Todos os segundos são contados. É comum eu perguntar ao editor o que precisa e ele responder: “atrasa os ponteiros do relógio”. Para dar as noticias à hora certa. Mas as noticias não escolhem a “hora certa”.
Só as guerras deveriam ser rápidas. Matar depressa, destruir depressa é uma forma de nos protegermos a nós próprios (e de nós próprios). Sabemos, desde os gregos, que a destruição é inevitável. Mas hoje até a guerra é lenta. O terrorismo parece cada vez mais paciente. Minando aqui e ali. Todos os dias.

Não ter pressa é ser mais sólido e hoje vivemos numa sociedade líquida como descreve o sociólogo Zygmunt Bauman. Hoje tudo é fluído, superficial, frenético. Hoje o tempo abortou o tempo livre. E a pressa gera vazio. Estamos constantemente a correr atrás de alguma coisa . O que ninguém sabe é a correr atrás de quê...»

(picture: pixabay)

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