Sérgio Godinho dispensa
apresentações. A
intemporalidade das suas músicas, a beleza dos seus poemas ou a sua capacidade
de reinvenção são conhecidas. A
propósito da sua vinda à nossa ilha, em 14 de Maio, para o concerto integrado
no 8º Congresso dos Professores da Madeira, segue-se a entrevista na qual se
falou de canções, palavras, política, do álbum “Irmão do Meio”, do espectáculo
no Funchal e até do novo filme de Ingmar Bergman.
Entrevista por Nélio de Sousa
Prof – O Sérgio Godinho tem sempre algo de novo para
dizer. Essa preocupação de actualidade, seja ao nível musical ou das palavras,
traduz um método, uma ciência ou é também muito de intuição e da forma de estar
na vida, da visão do mundo.
Sérgio Godinho (SG) – É
intuição. Eu sou mais intuitivo que outra coisa. Sou um autodidacta e ainda por
cima não sou muito organizado na criação, sou bastante disperso, um bocadinho
demais para o meu gosto mas tem-se que viver assim (risos).
Eu confio muito na minha
intuição, evidentemente há inspirações, mas há muito trabalho e há um trabalho
continuado. Porque depois temos de corrigir a intuição, que nos leva muitas
vezes a caminhos que são um bocadinho enganosos. Eu procuro voltar sempre a
esse material e perguntar-me “o que não está a satisfazer-me completamente
neste processo, neste caso particular, o que pode estar melhor?”, e faço muitas
versões até chegar a um burilamento que eu considero suficiente.
AS PALAVRAS
Prof – Que importância assumem as palavras na sua música?
SG – É óbvio que assumem muita importância, mas as
palavras são significantes de qualquer coisa, têm valor em si, têm valor de
evocação, e quando se fala das palavras fala-se das frases, fala-se da intenção
das frases, que é sempre de transmissão de algo que pode ser mais pessoal, pode
ser mais social, pode ser mais vivencial, mais político, mais íntimo.
As palavras são veículo para a transmissão daquilo que se
quer dizer. Mas, as palavras têm de existir com a música e isso é muito
importante. Eu não menosprezo a música só para que as palavras existam, porque
elas saem enfraquecidas. É essencial que elas vivam com a música de uma maneira
interactiva.
Prof – Para além do aspecto de conteúdo, poético, há o
aspecto musical em si.
SG – As palavras e as frases têm que ser musicais e
viver com a música senão é um objecto estranho a encaixar-se ou a
desencaixar-se.
ARTE: ACTO POLÍTICO E NÃO SÓ
Prof – Há quem defenda que fazer arte é sempre um acto
político. Qual a sua perspectiva?
SG – Acho que isso vale e não vale. É daquelas coisas
que são tão radicais que acabam por querer dizer tudo e podem nunca dizer nada.
Se é tudo político, acaba-se por desvalorizar aquilo que é realmente político.
Acho que a arte pode ter uma atitude lúdica, mais de
entretenimento, e isso vale por si (estou só a falar da música). Podemos ter
uma atitude de observação e de transmissão dessa observação, mas quando falamos
de arte eu não posso dizer que toda a arte plástica, por exemplo, tenha que ser
política. Ela causa uma impressão estética que nos faz sentir qualquer coisa de
forte, e isso é o mais importante, que ela nos toque e nos faça estremecer.
Prof – David Sylvian, músico inglês, afirmou recentemente
que a música é um importante instrumento político porque tem o potencial para
mudar fundamentalmente a mente ou o coração do indivíduo. Ele considera ser
esse o acto político mais profundo que alguém pode ser autor. Concorda?
SG – É, mas essa palavra “político” pode ser usada
com múltiplos sentidos. Nessa perspectiva de tocar o mais íntimo de cada um,
acho que é desvalorizar um bocado o termo político, por estar a incluir tudo
nisso. Acaba por não definir nada. Embora eu esteja de acordo com ele, o mais
importante para mim é tocar um ponto da sensibilidade de cada um, que faça uma
espécie de ligação com a sua própria sensibilidade.
Prof – O Sérgio Godinho, para além de ter a preocupação
de tocar as pessoas a outros níveis, não deixa de ter um olhar observador e
acutilante sobre as ambiguidades e contradições da realidade, seja social ou
não, mais político ou menos político.
SG – Claro. Absolutamente. Sempre. Olho para o mundo
e reajo ao mundo, reajo às coisas boas e às coisas más. Como é evidente, há uma
observação muitas vezes usando até a ironia, histórias ou figuras populares,
que reflectem sobre as coisas. Sempre foi assim, desde o princípio, nas minhas
canções e continua a ser.
TEMAS QUE PERDURAM
Prof – Reconhece alguma actualidade ao tema “Que força é
essa” (1971), por exemplo, apesar de ter surgido num contexto socio-político
muito determinado?
SG – Há coisas que não mudaram na situação social.
Infelizmente algumas coisas não mudaram e isso traz a actualidade ou, pelo
menos, a premência de continuar a cantar certas canções.
Houve algumas que morreram de morte natural porque ficaram
datadas. Mas outras que vêm até de épocas bastante determinadas, como seja “só há liberdade a sério quando houver a paz, o
pão, habitação, saúde, educação” [versos de “Liberdade”, faixa do álbum
“À queima roupa”, de 1974], continua a ser perfeitamente actual, porque aquilo
que está na canção continua a ser a realidade.
Prof – A luta de classes subjacente ao “Que força é essa”
faz sentido em 2005?
SG – Ela existe, absolutamente, porque há interesses
diferentes. Por que é que existe um sindicato? Existe um sindicato para
defender direitos de uma determinada classe, que tem que negociar com outra,
que tem interesses que são um pouco diferentes. Às vezes pode haver pontos de
entendimento, mas isso é outra coisa.
Prof – A canção que “Que força é essa” espelha realidades
como o nível reduzido do salário mínimo em Portugal.
SG – Existe uma grande desigualdade social no nosso
país e inúmeros problemas por resolver, que estão ligados a essa realidade mais
vasta que é o modo como a sociedade está estruturada.
Realmente, se pensarmos que em certos sectores como a
Educação continua a haver problemas estruturais terríveis, ou na Saúde, há
imensos problemas que têm de ser, digamos assim, apanhados pelos cornos para
que se dê um salto qualitativo.
Prof – “Que força é essa” insere-se num contexto de
ditadura política e de falta de liberdade de expressão, mas a globalização da
economia e as novas tecnologias trazem alguns problemas novos e velhos.
SG – Pode dar para o bem e para o mal.
Prof – As pessoas parecem abdicar voluntariamente de
certas liberdades, parecem um pouco anestesiadas, o que pode ser ainda mais
perverso.
SG – As pessoas constróem barreiras imaginárias em si
e acatam, interiorizam certos comportamentos conformistas, de uma maneira que
às vezes é surpreendente. Tem de haver uma capacidade de revolta ou, pelo
menos, de pôr em causa as coisas. E de estar atento, mesmo em relação a certos
benefícios da inovação, que podem ter o seu lado perverso.
Prof – Zeca Afonso disse, em 1985, «o que é preciso
é criar desassossego», «quando começamos a procurar álibis para justificar o
nosso conformismo, então está tudo lixado!» E disse mais: «acima de tudo, é
preciso agitar, não ficar parado, ter coragem, quer se trate de música ou de
política.»
SG – É o que a gente tem estado a falar, no fim de
contas. Eu acho que é também função do artista agitar as águas paradas. Isso
tem é respostas múltiplas. Por exemplo, o novo filme de Ingmar Bergman
[“Saraband”] trata do relacionamento entre pessoas, mas a dada altura entra de
tal maneira nas nossas dúvidas, nos nossos problemas íntimos, que é como se
fosse uma obra tão contundente como uma obra abertamente política.
CONCERTO NO FUNCHAL
Prof – O
alinhamento do concerto de 14 de Maio, na Madeira, tem em conta o facto de
integrar-se no Congresso dos Professores da Madeira?
SG – Não. Acho que a variedade das minhas canções já
responde a essa questão, de certo modo. Claro que poderei falar entre as
canções de uma certa realidade, mas as canções em si dão suficientes propostas,
mais do que respostas, elas fazem perguntas, que são múltiplas e que são
adequadas.
Neste momento, inclusivamente, estamos a mudar o repertório
após a série de espectáculos que culminaram no DVD “De volta ao Coliseu”
[lançado no final de 2004]. Não quer dizer que muitas da canções que estão lá
não sejam cantadas, mas renovar o repertório é uma coisa que é importante para
nós e, sobretudo, para as pessoas que já me viram mais do que uma vez, que não
podem estar sempre a ouvir a mesma coisa. Há um factor de novidade e de
frescura que é importante manter.
Estamos a pegar em canções que há muito tempo não
cantávamos, uma ou duas que até nunca cantei [ao vivo]. Há sempre esse agitar
das águas também para nós.
Prof – Pode
dar-nos algum exemplo dessas canções?
SG – Há muito que não cantava “Cuidado com as
imitações” [álbum “Campolide”, de 1979], que é uma canção que cantei durante
muito tempo e tínhamos deixado. Estamos a fazer um novo arranjo.
“IRMÃO DO MEIO”
Prof – Como surgiu a ideia e o conceito do álbum Irmão do
Meio?
SG – O Irmão do Meio foi um disco que surgiu por
alturas em que descobriram, eu não reparo muito nas efemérides, que eu fazia
trinta anos de carreira. Trinta anos desde que gravei o meu primeiro disco [“Os
sobreviventes”, 1971]. A editora pensou fazer um tributo com cantores, bandas,
etc., uma coisa exterior a mim.
Eu não achei que isso fosse muito interessante porque, por
um lado, gostava eu de me envolver pessoalmente num projecto desses e era uma
boa ocasião para o fazer. E, por outro lado, ao tomar, entre aspas, as rédeas desse
projecto eu podia pessoalizá-lo mais e ter todo o intercâmbio, muito frutuoso,
que eu acabei por ter com esse pessoal que eu escolhi e, portanto, foi uma
escolha pessoal para o bem e para o mal.
Houve dois ou três que tiveram que ficar de fora, não direi
quem foram [risos], porque é deselegante, mas os convites foram aceites com
muito prazer das outras pessoas, o que me deu igualmente prazer.
O facto de ser uma escolha pessoal, ou seja, de eu me
envolver no processo, permitia ainda que o disco não se submetesse à lógica das
canções mais conhecidas. Penso que isso era importante porque há muitas canções
que ficam na relativa obscuridade por razões que, aliás, muitas vezes não são
culpa delas. Isso também me permitiu ir buscar, a par de algumas canções bastante
conhecidas, algumas que nunca tinham sido tocadas ao vivo.
Alguns dos intervenientes que as tocaram não as conheciam.
Foi o caso dos Xutos [e Pontapés], por exemplo, não conheciam a canção “Antes o
poço da morte” [álbum “No canto da boca”, 1980]. Conheciam mas nunca tinham
reparado.
Como os Da Weasel não conheciam bem “Isto anda tudo ligado”
e por aí adiante. Já para não falar, é evidente, dos intervenientes brasileiros
e de Tito Paris, que conhecem menos a minha obra, digamos.
Foi toda uma aventura que se foi desenvolvendo ao longo de
um ano ou até mais porque cada caso era um caso. Foi tão diversificada e
realmente muito enriquecedora que o resultado acabou por dar muito certo. O
facto é que o disco teve um feedback muito bom por parte do público, tendo sido
número um do top durante bastante tempo.
Prof – Mencionou o facto de ter sido um processo em que
tomou as rédeas, mas também entregou as rédeas aos seus convidados.
SG – Exactamente. Por isso é que eu disse rédeas
entre aspas. Há cinco canções que são com o nosso som, com a minha banda, mas
ao mesmo tempo pedi a certos grupos que fossem eles a fazer os arranjos ou, no
caso do David Fonseca, que fosse o Rui Costa a fazer o arranjo; o Tomás
Pimentel também fez o arranjo da canção do Vitorino; os Gaiteiros fizeram o seu
próprio arranjo; os Clã, entre outros.
Eu integrei as minhas canções e a mim próprio, vocalmente,
em outros universos. Neste disco não se sente nenhum tipo de constrangimento do
género “vou ter que me violentar para tocar desta maneira, para cantar desta
maneira, para entrar nesta canção.” As coisas fluíram de uma maneira muito
natural e fiquei contente com isso.
Prof – Deve ter sido um processo que deu muito gozo.
SG – É evidente que nos divertimos muito também. Não
posso dizer que foi um processo conturbado. Houve num caso ou outro, um atraso
que pôs em causa um dia de estúdio, mas de um modo geral as pessoas estiveram
todas na boa.
Quando as pessoas são estimuladas e gostam de música acabam
por ter prazer em ter um tipo de participação diferente daquela que seria a sua
participação no seu universo. Eu ser convidado para cantar uma canção de outra
pessoa ou ser convidado para um projecto qualquer refresca-me, de certo modo.
ABERTURA A NOVAS LINGUAGENS
Prof – Após trinta anos de carreira, mantém sempre uma
atitude de abertura face a novas linguagens e sonoridades.
SG – Porque isso me estimula a continuar, a estar
vivo dentro da música e estimula-me a encontrar novos caminhos na própria
composição. Isso reflecte-se.
Prof – O Irmão do Meio estará entre uma compilação e um
álbum de originais.
SG – Eu acho que sim. Precisamente, como muitas das
canções não eram muito conhecidas, quase que as encaro como originais. Não é
bem uma compilação porque pressupõe que sejam as mesmas versões. Aqui há
recriações. Elas tomam uma nova vida.
Prof – Há temas com um grande cunho do estilo do artista
convidado. Por exemplo, Da Weasel ou Xutos e Pontapés. Nesse sentido, como que
se apropriam da canção, pela marca muito forte que colocam.
SG – Também José Mário
Branco, que fez um arranjo muito ao seu estilo.
Prof – Tudo terá sido mais enriquecedor ao ter-se deixado
contaminar por todas essas linguagens e estilos.
SG – Com certeza. Também
as próprias canções que eu escolhi, as escolhas foram quase sempre minhas, no
caso de José Mário foi ele que sugeriu “Que força é essa”, que foi já um
trabalho de pesquisa em relação àquilo que iria dar certo em determinada ponte.
DAS CANÇÕES AOS CONVIDADOS
Prof – As canções é que levaram também aos convidados?
SG – Não. Não comecei
pelas canções. Comecei pelos convidados porque havia pessoas com quem eu queria
trabalhar, mas depois logo a seguir pensei “que canção é que encaixa bem com
esta pessoa?”, colectiva ou individual.
Prof – As suas canções também têm potencialidades, uma
certa plasticidade e capacidade de se adaptarem a outras linguagens.
SG – Isso têm com
certeza. Isso foi amplamente provado no disco.
Prof – Isso prova a intemporalidade e actualidade das
canções.
SG – Sim e também prova
outra coisa. Dizia-se a certa altura que só eu conseguia cantar as minhas
canções e isto veio provar o que já tinha sido provado com os Clã, que era um
caso determinado, mas, neste caso, destruiu completamente essa tese. Arrasada!
[risos].
Prof – Ouvimos a marca de cada artista nas canções, mas
são sempre uma canções de Sérgio Godinho, não perderam a sua identidade.
SG – Não. Não estão
descaracterizadas e o corpo da canção continua bastante coeso.
Para mais dados sobre o artista (discografia, letras, espectáculos, fotografia,
etc.) consultar www.pflores.com
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