«And some people say that it's just rock 'n' roll. Oh but it gets you right down to your soul» NICK CAVE

quarta-feira, outubro 29, 2008

Diploma automático à nascença

«A repetição não é um meio pedagógico adequado», como diz o Conselho Nacional da Educação, mas é o mais fácil e mais barato. A sociedade portuguesa está disposta a custear outras soluções pedagógicas, em alternativa à repetição? Não está.
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Já estivemos mais longe da entrega de um diploma universitário à nascença, para evitar a maçada de estudar, esforçar-se, ser disciplinado ou então para resolver a vergonha dos níveis de insucesso escolar, apesar dos esforços para o disfarçar estatisticamente do Ministério da Educação.

Por via do 4R, fiquei a saber que o Conselho Nacional da Educação advoga a passagem de ano escolar obrigatória até aos doze anos, porque o «problema das repetições assume, em Portugal, proporções catastróficas para os alunos e para o sistema.»

Podemos ainda ler no parecer daquele conselho, Educação das crianças dos 0 aos 12, que, nalguns países, «as repetições foram substituídas por estratégias de apoio aos alunos, intervenção aos primeiros sinais de dificuldade, estratégias de diferenciação pedagógica que permitem dar respostas a necessidades de aprendizagem de alunos com sucesso e de alunos que manifestam problemas na aprendizagem.»

Este combate à selectividade social na escola dificilmente será entendido por uma sociedade selectiva. Por mais que expliquem os nobres e utópicos objectivos da solução, jamais descolará da etiqueta de facilitismo e da consequente degradação dos conhecimentos e competências a adquirir na escola.

O Conselho Nacional da Educação está com certeza bem intencionado, mas pode estar equivocado. É preciso terra muito fértil para receber tal semente. Portugal não é a Finlândia.

Quanto ao Ministério da Educação, interessado em dar boas e rápidas estatísticas ao Governo da República, suspeito muito das suas intenções. A baixa politiquice eleitoralista não olha a meios.

Para tal medida avançar, seria preciso garantir condições de acompanhamento a tal ponto que fosse capaz de evitar que os estudantes escorregassem para o insucesso escolar.

Contudo, não há meios para isso. O orçamento para a Educação teria de ser outro. Nem a sociedade portuguesa nem o Ministério da Educação estão dispostos a esse esforço e a essa prioridade nacional. Nem tão pouco o contexto sociocultural de Portugal é o mesmo de outros países europeus, onde determinadas soluções poderão funcionar.

Assim, na prática, a estratégia anunciada equivalerá a passar sem saber. A realidade será esta. Nesse caso, o Ministério da Educação que dispense os estudantes de irem à escola. Já o fez quando da aprovação do novo Estatuto do Aluno. Faz um exame no final e está feito.

Mas a estratégia é malvada: passou sem saber? Então a culpa é do professor, está claro, mesmo que muitos dos problemas o ultrapassem, o que entronca com o novo sistema de avaliação... São dois coelhos de uma cajadada: melhora-se as estatísticas na secretaria e pode-se sempre, culpando os professores, evitar que progridam na carreira (cortar no orçamento com pessoal).

E não gosto que se atribuam as culpas do insucesso escolar sempre à «ineficácia do sistema» (parecer citado, página 8). As famílias e os estudantes não têm nenhum papel no seu trabalho escolar, na sua disciplina e atitude? Não têm responsabilidade na não aprendizagem? São meros joguetes ou vítimas do sistema? É tudo culpa dessa entidade chamada sociedade? Uma coisa é ter dificuldade, outra coisa é não querer aprender e não deixar os outros aprenderem nas turmas.

Sabemos que os alunos com um estatuto socio-económico fraco têm mais probabilidades de ter insucesso escolar. Mas, é ilusório que a escola possa mudar a estrutura da sociedade e acabar com as desigualdades prévias. Pode e deve fazer o que lhe compete, mas não faz milagres. É uma ilusão a criação de um estudante novo, tal como o comunismo, crente na bondade humana, pensou que criaria uma sociedade nova, um Homem novo.

Os estudantes não estudam apenas por ser poético e dar prazer. Não é espontâneo. É preciso esforço, trabalho, disciplina. Ora, o Conselho Nacional da Educação parece não conhecer a natureza humana. Pensa que o ser humano está naturalmente vocacionado para a cultura escolar, com alegria e prazer, sem a sua vontade ser educada, sem ser disciplinado, sem criar hábitos de trabalho.

Como pensam que os estudantes e as famílias reais, com a cultura cívica e a literacia portuguesas, vão receber os sinais desta medida? Não é preciso estudar. O ser humano busca, naturalmente, a economia do esforço e o prazer.

«A repetição não é um meio pedagógico adequado», como diz ainda o Conselho Nacional da Educação, mas é o mais fácil e mais barato. Quem está disposto a custear outras soluções pedagógicas, em alternativa à repetição? Os economicistas e neoliberais apologistas da selectividade pura e dura? Se for apenas para acabar com a repetição para fins meramente estatísticos, mais vale nem falar mais no assunto. Ou se faz a sério ou então mais vale deixar como está.

Além disso, numa sociedade em que se desvaloriza a escola, o conhecimento, a cultura, como vamos implementar nas escolas a atitude positiva e empenhada dos alunos perante o trabalho intelectual? Como vamos garantir as condições de disciplina e trabalho nas salas de aula? Porque acabar com as retenções nunca poderá significar avançar sem saber. Se assim acontecesse, seria um dupla exclusão dos estudantes.

José Saraiva, o historiador e professor universitário, falecido em 1993, como deu conta Maria Lúcia Lepecki (revista Super Interessante, nº116-Dezembro de 2007), «ponderando os, naquela altura, já visíveis e preocupantes sintomas do que hoje chamamos "facilitês" em todos os níveis de ensino, propunha, com a sua típica (e frequentes vezes sarcástica) ironia, um santo remédio para acabar de vez com todas as preocupações relativas a escolas, professores, auxiliares de ensino e sobretudo estudantes, quaisquer que esses fossem, onde quer que estivessem.»

«A solução era simples, eficaz e certamente barata: assim que uma criança recém-nascida fosse registada, o responsável pelo registo agarrava a cédula pessoal, hoje chamada "boletim de nascimento", e tomava, célere, o rumo da sua Junta de Freguesia, onde, em formulário apropriado, requeria um diploma universitário, a seu critério, para o bébé cuja chegada ao mundo se documentava e a quem, entretanto e em casa, alguém trocava fraldas.»

«Do que recordo, mas Saraiva talvez o tenha apenas implicitado, era automático o deferimento do pedido, seguindo-se, de imediato, a emissão do documento. A partir desse momento, uma lisa estrada se oferecia ao infante e a toda a família. Era o definitivo, libertador, adeus a maçadas com escolas, aulas, trabalhos para casa e actividades extra-curriculares» entre outros aspectos como as faltas às aulas...

Ora, o 4R, pela mão de Pinho Cardão, optou por um comentário sarcástico, a lembrar aquele de José Saraiva: «a passagem de ano devia ser obrigatória até ao bacharelato de Bolonha. Isto como medida transitória, até que o mesmo douto Conselho Nacional elabore os estudos que permitam a cada nascituro levantar automaticamente o diploma de Doutor na Loja do Cidadão. Simplex, um país de doutores e sucesso escolar garantido a 100%.»

Apesar de não ter perdido a esperança, nesta fase também estou mais inclinado para o sarcasmo.

Recorde-se:
Elementos sobre o estado da Escola Pública 14: diploma universitário à nascença resolvia problemas da Educação

Outros links a partir daqui:
Elementos sobre o estado da Escola Pública 16: debandada

Notícia:
RTP
SIC 1
SIC 2 : Nuno Crato

2 comentários:

  1. Desvanecido pela citação. Muito obrigado!...
    E se José Saraiva, com ironia já dizia o mesmo, o que muito me honra, então teremos que persistir no caminho, pois já os romanos diziam "ridendo, castigunt mores", isto é, é a rir que se castigam os costumes!...
    Oxalá!...

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