«Em resumo, D. Quixote enfrascou-se tanto na sua leitura [de romances de cavalaria] que a ler passava as noites inteiras em claro e os dias cada vez mais na escuridão; e assim, do pouco dormir e do muito ler, secou-lhe o cérebro, de maneira que acabou por perder o juízo. Encheu-se-lhe a imaginação de tudo o que lia nos livros, não só de encantamentos como contendas, batalhas, desafios, feridas, galanteios, amores, adversidades e disparates impossíveis; e assentou-se-lhe de tal modo na imaginação que era verdade toda a trama daquelas soadas e sonhadas ficções que lia, que para ele não havia outra história mais verdadeira no mundo.»
«A razão da sem-razão que à minha razão se faz de tal maneira enfraquece a minha razão, que com razão me queixo da vossa formosura.» [...] Com estas palavras perdia o pobre cavaleiro o juízo e esforçava-se por entendê-las e arrancar-lhes o sentido, que não extrairia nem as entenderia o próprio Aristóteles, se ressuscitasse de propósito para isso.»
«Na verdade, já louco varrido, acabou por ter a ideia mais estranha que até hoje teve um louco no mundo, e foi que lhe pareceu proveitoso e necessário, tanto para aumentar a sua honra como para o serviço da sua república. tornar-se cavaleiro andante, e ir por todo o mundo com as suas armas e o seu cavalo em busca de aventuras e excutar tudo o que lera que os cavaleiros andantes realizavavam, reparando toda a espécie de ofensas e expondo-se a riscos e perigos, com o que, vencendo-os, alcançasse eterno nome e fama.»
Miguel de Cervantes: O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de la Mancha: Relógio D'Água: Maio de 2005 (obra originalmente editada em 1605): tradução e notas de José Bento: páginas 36 a 40.
D. Quixote de la Mancha (1)
Sem comentários:
Enviar um comentário