«- Neste que agora nos aconteceu [pancadaria pela mãos de um grupo de vinte galegos - vide post anterior] - respondeu Sancho -, gostaria eu de ter essa inteligência e essa coragem que vossa mercê diz; mas juro-lhe pela minha palavra de pobre homem, que mais estou para emplastros que para sermões.»
«Quem diria que, após as tão grandes cutiladas que vossa mercê [D. Quixote] deu àquele desgraçado cavaleiro andante [refere-se a outro episódio], havia de vir tão rapidamente e em seguida esta grande tempestade de pauladas que caiu nas nossas costas?»
«- Senhor, já que estas desgraças são frutos da cavalaria, diga-me vossa mercê se sucedem muito amiúde, ou se têm as suas épocas próprias para acontecer; porque me parece que após duas colheitas ficaremos inutilizados para a terceira, se Deus, pela sua infinita misericórdia, não nos socorre.»
D. Quixote: «[E]mbora tenhamos ficado pisados nesta contenda, estamos ofendidos porque as armas que aqueles homens traziam, com que nos pisaram, não eram senão os seus paus, e nenhum deles, segundo me recordo, tinha estoque, espada ou punhal.»
Sancho: «[M]al pus a mão na minha espada, logo me benzeram os ombros com os seus paus tão grandes que pareciam pinheiros, de modo que me tiraram a vista dos olhos e a força dos pés, atirando-me para onde jazo agora, e onde não me dá cuidado nenhum pensar se foram uma ofensa ou não as pancadas com os paus, como me dá a dor das pancadas, que me hão-de ficar tão impressas na memória como nas costas.»
«- Apesar de tudo isso, faço-te saber, irmão Pança - replicou D. Quixote -, que não há lembrança que o tempo não apague, nem dor que a morte não consuma.
- Pois que maior desdita pode haver - replicou Pança - que aquela que aguarda o tempo que a consuma e a morte a acabe? Se esta nossa desgraça fosse daquelas que com um par de emplastros se saram, não seria tão mau; mas estou a ver que não vão chegar todos os emplastros de um hospital para lhes dar pelos menos algumas melhoras.
- Deixa-te disso e tira forças da fraqueza, Sancho - respondeu D. Quixote, que assim farei eu».
Miguel de Cervantes: O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de la Mancha: Relógio D'Água: Maio de 2005 (obra originalmente editada em 1605): tradução e notas de José Bento: páginas 124-125.
D. Quixote de la Mancha (1)
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