«And some people say that it's just rock 'n' roll. Oh but it gets you right down to your soul» NICK CAVE

domingo, setembro 06, 2009

«A relassa fraqueza»

José Pacheco Pereira escreveu um texto no Público (29.08.2009) a propósito da queda de uma falésia no Algarve, que se aplica ao caso das quebradas na Madeira, nomeadamente no acesso ao Jardim do Mar e Paúl do Mar. O "optimismo" e a "bonacheirice" irresponsáveis continuam e, se morrer alguém, a culpa será da natureza e nunca dos homens. Sabe-se o que está errado mas prefere-se viver a ilusão da mentira e do irrealismo, à espera que tudo se resolva por si, algum dia, à base da esperança e do optimismo. Preferimos ser complacentes, "relassos" e "bonhacheironos". Nada de disciplina e ordem cívicas. Há um contexto mental-cultural que é (quase?) impossível mudar.
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«Já citei mais de uma vez uma das cartas ficcionais de Fradique Mendes a Madame de Jouarre, em que este descreve a sua chegada de comboio a Lisboa. A carta é uma cruel metáfora sobre Portugal, das mais cruéis e desapiedadas que conheço, e mortiferamente verdadeira. Nela cabe da pior maneira a indústria do "sonho", da "esperança" do "optimismo", com que uns se pretendem distinguir dos outros como sendo melhores. Eles "sonham", os outros não.

Essa espécie de oração sobre a "esperança" e o "sonho" tem outras variantes, como seja: "temos que acreditar em nós próprios", "somos capazes", "os portugueses só sabem dizer mal de si próprios diferentemente dos outros povos que nunca o fazem" (quem diz isto não sabe nada dos "outros povos"), "não se pode só dizer mal", etc., etc. Este mambo-jambo piedoso apenas pretende manter os portugueses numa espécie de estado de estupor cívico, ignorando a sua realidade e os seus problemas, envolvendo-os naquilo que o mesmo Eça chamava o "manto diáfano" da mentira. Este "manto diáfano", muitas vezes mais para o nevoeiro espesso do que para o "diáfano", é assegurado pela propaganda dos poderosos, mas também pela credulidade emocional dos destinatários.

O que está de mais cruel na carta de Fradique é a a afirmação de que o êxito desse marketing da "esperança" é que ele tem sucesso, não porque os portugueses tenham qualquer esperança, mas sim porque lhes agrada ouvir esse discurso, na exacta medida em que também lhes agrada o seu oposto, o catastrofismo absoluto. Não tendo que ser bipolares, algum dos lados está errado, ou então somos incapazes de nos colocarmos ao centro, no domínio da Razão. Estão sempre a acenar-nos com o Pathos, e o Pathos "passa" bem quer na televisão quer na retórica política produzida por cínicos para as massas. Sensatez - escassa; expectativas irrealistas - muitas. É o "sonho".

Eça, na pele de Fradique, culpava a "bonacheirice" dos portugueses:

"Humilhação incomparável! Senti logo não sei que torpe enternecimento, que me amolecia o coração. Era a bonacheirice, a relassa fraqueza que nos enlaça a todos nós Portugueses, nos enche de culpada indulgência uns para os outros, e irremediavelmente estraga entre nós toda a Disciplina e toda a Ordem."

As palavras de Eça "Disciplina" e "Ordem" são de natureza cívica, não são emanações da autoridade. A "ordem" aqui não tem o sentido salazarista que 40 anos depois vai ter: Eça não está a pedir que nos imponham qualquer "ordem" para corrigir os nossos defeitos, está a enunciar o que espontaneamente nos falta, o que marca o nosso atraso, aquilo de que não somos capazes, pela nossa "relassa fraqueza". E todos os dias precisamos desta crueldade queiroziana em vez da louvação das nossas virtudes "bonacheironas".

Também por isso, não há dia em que leia mais uma peripécia portuguesa da culpa, e elas são quase diárias, sem que não me lembre do Fradique "humilhado" por si próprio, por ser tão "bonacheirão" como todos os portugueses e acabar por ser tão complacente como qualquer um. E observar a triste exibição da nossa incapacidade para qualquer "Disciplina" e "Ordem" por causa da nossa "culpada indulgência".

Veja-se o que aconteceu com as falésias do Algarve, um remake da ponte de Entre-os-Rios, só que menos espectacular. A falésia da praia Maria Luísa caiu matando várias pessoas. Seguiu-se a visita das Personalidades e a explicação das Entidades, no meio de um cenário de basbaques "populares", a olharem para o local onde pouco antes passeara a morte. Televisões estavam todas e metade dos telejornais ficava garantido pela espectacularidade do cenário, pela confluência de polícias, militares, bombeiros, botes, ambulâncias, gruas e fitas de demarcação. Boa televisão, boas audiências, até que apareça outra tragédia e melhores imagens.

Uma pletora de entidades, ministérios, institutos, polícias, autarquias, militares, instituições científicas veio explicar que a culpa era do mar, do vento, da areia e das pedras que não se comportaram como devia ser. E mais, a culpa é da física, da química, da matemática, da estatística, do aquecimento global, das alterações climáticas, da geologia por via dos sismos, do magma profundo. Não é nunca dos homens, nem dos que deviam cuidar, nem dos que não tiveram cuidado. O resultado é sempre o mesmo, nem os que deviam cuidar vão cuidar melhor, nem os que deviam ter cuidado vão passar a tê-lo. Se houvesse "Disciplina" e "Ordem", seria isso a lição que as mortes nos dariam, tarde e a más horas, mas infeliz lição.

Assim não se tira lição nenhuma. Uma semana depois de uma azáfama de verificação de falésias, a célebre encarnação do ditado "casa roubada, trancas à porta", chegou-se à conclusão que várias arribas estão exactamente na mesma situação das da praia Maria Luísa, e são consideradas "perigosas". Se não houvesse a regra da "relassa fraqueza", teria que se tirar a conclusão óbvia de que tinha que ter havido incúria, porque a verificação que se fez agora era suposto estar a ser feita de forma regular antes. Foi como as pontes depois do acidente de Entre-os-Rios. Foi-se verificar como estavam várias pontes e estavam mal. Será que tudo foi corrigido depois dos holofotes se terem virado para outra calamidade? Duvido, "a relassa fraqueza (...) estraga entre nós toda a Disciplina e toda a Ordem".

O problema é que nada muda enquanto "em cima" se continuar assim e cá "em baixo", sem exemplos que moldem a consciência cívica, sem responsabilidade assumida, sem culpa identificada, no fundo, sem consequências, pode-se continuar a achar que o "sonho" e a "esperança" impedem as pedras de virem por aí abaixo, como se as palavras bastassem. Triste ilusão que alguém paga sempre. Nas falésias foi uma infeliz família, na comunidade a que chamamos Portugal, somos quase todos, a começar pelos que menos defesas têm, os que são mais pobres, os que pagam a dobrar. É que o optimismo de encomenda não se come. Nem a "bonacheirice"

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