«And some people say that it's just rock 'n' roll. Oh but it gets you right down to your soul» NICK CAVE

domingo, agosto 17, 2014

Autonomia como destino



A ilustre jornalista Raquel Gonçalves, por quem nutro simpatia, escreveu (blogue A preto e Branco na dnoticias.pt) que o madeirense «já não quer aquela conversa fiada de mais Autonomia, de Centralismo e de estudos pseudo-académicos sobre o Deve e o Haver pagos a peso de ouro a historiadores do regime.»

Encaro esta afirmação sobretudo como uma crítica à actual governação, porque penso que os madeirenses querem (e devem, natural e legitimamente, querer mais Autonomia), apesar de, por exemplo, Antero Monteiro Diniz, ex-Ministro/Representante da República para a Região Autónoma da Madeira, não dar isso como assente, no seu livro Evolução ou Continuidade: reflexões sobre o sistema autonómico da Madeira (p.114), em que coloca, entre muitas outras questões prévias, a seguinte:

«Será que a população e o eleitorado da Madeira pretendem verdadeiramente alterar o condicionalismo político, económico e social existente, ou ao contrário, mantê-lo e preservar a sua continuidade?»

Mas, diz outra coisa. Não fazer nada e apostar na continuidade é ficar-se bloqueado, porque «tem-se por seguro que o sistema actual e todos os seus órgãos políticos - Representante da República, Assembleia Legislativa da Madeira e Governo Regional - se encontra bloqueado, frustrando as expectativas dos constituintes fundadores, reclamando-se uma reformulação capaz de flexibilizar o seu funcionamento».

A Autonomia é algo transversal e estrutural, que não pertence nem deve ser a bandeira de um só partido, com vantagem para o próprio se for só ele que recolha, por exemplo, louros eleitorais de uma visão mais ambiciosa e mais ampla sofre o futuro da Autonomia. Porque há muito caminho para fazer em termos autonómicos. É um processo evolutivo.

A maturidade democrática da sociedade madeirense será um elemento importante nesse processo. Não se pode confundir quem governa no momento com as legítimas aspirações autonómicas de um povo ou o subsistente e discriminatório centralismo do Estado. A Autonomia será também o que os madeirenses fizerem dela. Nenhum Governo Regional pode cair na tentação de instrumentalizar os poderes autonómicos no sentido de favorecer ou desfavorecer qualquer sector, instituição ou cidadão, como alguns temem.

A felicidade de um povo não tem a ver apenas com a sobrevivência assegurada e o bem-estar económico e social. O ser humano, acautelada a sobrevivência, aspira a outros patamares e precisa desenvolver-se/progredir/elevar-se. Tem também a ver com o viver a sua própria vida e fazer as suas próprias escolhas.

A autonomia (1) tornou-se um valor chave nas sociedades livres. O madeirense não se deve conformar à Autonomia que já conquistou. O inconformismo é importante para o progresso. As escolhas de um povo são as melhores porque são as suas escolhas, mesmo que não sejam as melhores, passe-se a aparente contradição.

A Autonomia é imparável e seria trágico se se abrisse mão dela por actos, hesitações ou omissões. É um valor que tem de estar acima de querelas domésticas e do culto de egos. Seria a estagnação. Ela continua a ter, naturalmente, inimigos lá fora, mas todos os madeirenses querem o melhor para a sua terra e querem ser senhores do seu destino. E são responsáveis pelos líderes que escolhem para liderar e concretizar tais desígnios.

Um forte apelo da Autonomia é a luta activa e real (e possibilidade de fracasso) que ela implica, para estes portugueses no meio do Atlântico realizarem as suas conquistas (obter melhores condições de vida, escolher e comandar o seu destino). Se nos dessem autonomia sem ser nossa conquista, não seria a mesma coisa, porque precisamos de ser activos e estar no controlo das coisas, em vez de sermos subjugados e passivos.

Temos de ser nós a encontrar e a conquistar o nosso caminho. Um povo que aprendeu a sobreviver, em condições muito difíceis nestas ilhas, a transformar a paisagem natural e a dominar a orografia agreste com as suas mãos, não espera nem quer nada de mão-beijada. Não pode é conformar-se, por mais confortável que seja, no imediato, à sua fraca «intervenção pública na avaliação e julgamento do poder político, acomodando-se, ao contrário, salvo sectores minoritários, numa postura de indiferença, ou de passiva e silenciosa aceitação», para citar ainda Monteiro Diniz.

Os madeirenses não podem, por exemplo, aceitar que a dívida da Madeira, resultante de investimento público, que de algum modo beneficiou a população (não cabe aqui desenvolver o tema dos maus investimentos e erros que se conhecem, alguns comentados neste blogue), tenha um tratamento discriminatório pelo Estado Central face a outras dívidas, como a recente dívida/fraude no BES, resultante de benefícios puramente privados e do capitalismo selvagem, sem regulação ou com fraca regulação, que põe muita coisa em risco no País.

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A propósito:

(a) Evolução ou Continuidade: reflexões sobre o sistema autonómico da Madeira de Antero Monteiro Diniz, ex-Ministro/Representante da República para a Região Autónoma da Madeira, publicado em 2013. Refira-se ainda a entrevista concedida à revista Islenha de Junho de 2007, incluída no referido livro.

(b) Há quem defenda que o limite da Autonomia são os atributos da soberania, do Estado: Direitos, Liberdades e Garantias dos cidadãos, Política Externa, Defesa Nacional, Segurança Interna, Sistema Nacional de Segurança Social e Tribunais de recurso. Autonomia não é independência.

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Nota (1)

Ao folhear o livro com algumas ideias (pouco ortodoxas) do Papa Francisco (Palavras de Esperança, Terreiro do Paço Ed. 2013), deparei-me com a seguinte perspectiva sobre a autonomia: «O homem de hoje experimenta o desenraizamento e o desamparo. Leva-o afã desmedido de autonomia herdado da modernidade» (p.32).

Penso que não é só o desenraizamento e o desamparo que o preocupa. O homem livre, inconformado, autónomo e no "controlo" do seu destino, no que está ao seu alcance controlar, faz as suas escolhas, que pode passar por não escolher o «amparo» e as «raízes» (autoridade) da religião, e até da própria fé, que ajudam, como o estoicismo (obediência à natureza, ao decurso natural do universo e à razão), a aliviar e a ultrapassar o sofrimento: a manter a serenidade perante tanto as tragédias e as alegrias, isto é, a suportar as dificuldades inerentes à vida, confiando no destino (abdicar do controlo para ter mais controlo emocional). A individualidade e a autonomia não cria muitos fiéis nem enche igrejas porque aqueles valores não conduzem à passividade e ao colocar-se nas mãos de outros, como pretendem muitas formas de amparo (e quem não quer amparo?). Os poderes gostam muito de rebanhos.

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