«Et tu, Brute?» (E tu também, Brutus?), exclamou o imperador Júlio César ao seu amigo Marcus Brutus, no momento em que foi apunhalado e assassinado por um grupo de senadores (imagem da pintura Morte di Cesare de Vincenzo Camuccini) |
O valor da Amizade também está em crise? O que têm as redes sociais, a crise económica e social ou Alberto João Jardim a ver com isso? É um tema de interesse humano, que merece análise e reflexão num tempo de relativismo dos valores e do que é essencial.
1.
Comecemos por pensar sobre a Amizade. Não com as comuns definições de dicionário, mas pelo que de mais profundo e subtil nos diz sobre a Amizade uma personagem no famoso romance As velas ardem até ao fim de Sándor Márai, entre as páginas 102 e 104 (Publicações Dom Quixote 19ª edição: 2009).
«Não há processo emocional mais triste e mais desesperado que quando uma amizade entre dois homens arrefece. Porque entre um homem e uma mulher tudo tem determinadas condições, como o regateio no mercado. Mas o sentido mais profundo da amizade entre homens é precisamente o altruísmo, o facto de não querermos o sacrifício do outro, nem ternura, não querermos nada, apenas manter o acordo duma aliança silenciosa.»
«Éramos amigos, não companheiros, compadres, ou camaradas. Éramos amigos e não há nada na vida que possa compensar uma amizade. Nem mesmo uma paixão devoradora pode oferecer tanto prazer como uma amizade silenciosa e discreta proporciona àqueles que são tocados pela sua força.»
«Porque a amizade não é um estado de espírito ideal. A amizade é uma lei humana rigorosa. Na antiguidade era a lei do mais forte, nela se baseavam os sistemas jurídicos das grandes civilizações. Para além das paixões e do egoísmo vivia essa lei, a lei da amizade, nos corações humanos.»
Explica ainda a razão de a amizade ser «mais poderosa que a paixão»: «a amizade não podia levar à desilusão, porque não queria nada do outro, podia-se matar o amigo, mas a amizade que se formou na infância entre duas pessoas, talvez nem a morte a pudesse matar: a sua recordação continua a viver na consciência das pessoas, como a recordação dum acto heróico silencioso.» Um acto heróico «como qualquer atitude humana que é desinteressada.»
2.
As redes sociais apresentam vantagens. Além de permitir exercitar a partilha, a escrita e o pensamento, é um meio de contacto, de encontro e de comunicação entre as pessoas, embora haja o risco de também «ampliar solidões», como referiu o poeta madeirense José Tolentino Mendonça (Estante - Abril de 2014). Acrescenta que é também um «lugar de muito desencontro, de muita desconfiança.»
Até que ponto se firma a Amizade na superficialidade dominante e confundindo-se virtualidade com realidade? Por alguma razão o Facebook, por exemplo, criou mecanismos para distinguir entre «amigos» e «conhecidos»: não é possível ao ser humano dar atenção a tanto amigo, mesmo virtual. «Os meus amigos reais já se queixam tanto da minha falta de tempo. [Aderir ao Facebook] seria só criar mais amigos insatisfeitos, e mais culpabilidade», referiu ainda José Tolentino Mendonça na já mencionada entrevista, que é ainda citada no parágrafo seguinte.
A Amizade exige profundidade, dedicação, perenidade, desinteresse, no sentido que vimos, e o tal «silêncio» ou recato. Ora, as redes sociais primam pela superficialidade e pela virtualidade («também é um mundo de muita ilusão e fabricação»), pela venda de uma imagem irreal trabalhada pelos próprios («onde é o mais o que as pessoas desejam ser do que aquilo que são»), pelo alarde e ruído, pelo interesse e competição em vender a tal imagem, nomeadamente na exibição de uma grande colecção de amigos, e por uma qualidade efémera: num click se faz ou desfaz uma "amizade".
Os políticos, por exemplo, motivados pela questão da popularidade e interesse eleitoral, gostam de ter muitos amigos e têm aderido muito às virtualidades das redes sociais. Veja-se que até o líder da Santa Sé, seja por via do Twitter, mais personalizado, mas também Facebook, Youtube, Flickr, tira partido desses meios face às vantagens comunicacionais, isto é, de propaganda, na venda das ideias do Vaticano ao serviço da difusão da fé cristã.
Há amigos que, movidos pelo interesse, conduzem à desilusão e ao desgosto. Mesmo amigos concretos, fora das redes sociais, podem revelar-se virtuais e aplicar umas facadas nas costas. A frase «Et tu, Brute?" remete a uma famosa história no século I A.C., em que o imperador romano Júlio César foi vítima de uma conspiração de senadores para tirá-lo do cargo. Entre os algozes estava o amigo Marcus Brutus. O assassinato consumou-se através de punhaladas.
Um simples guia para raparigas adolescentes (Violetta: a Amizade - 2014 Disney Interprises/Goody S.A.), depois de definir a amizade como um dos «sentimentos mais belos e únicos do mundo», começa por dizer as qualidades de uma verdadeira amiga: «nunca te trairá» surge logo em primeiro lugar. E explica: «podem zangar-se, não estar de acordo sobre algo, talvez perderem-se de vista por algum tempo, mas nunca, em tempo algum, uma verdadeira amiga trairia a tua confiança. Ela sabe o que é mesmo importante para ti e não fará nada que te possa magoar.» No final do livro, umas das dez regras ou mandamentos da amizade é, precisamente, esta: «uma amiga de verdade nunca trairá a tua confiança.»
Saliente-se que, no contexto da actual crise económica e social, na Região e no País, amizades verdadeiras e bem reais se têm revelado através de actos nobres. Com solidariedade e sem lugar a punhaladas nas costas, isto é, traição. E são actos discretos, que não necessitam de publicitação e alarde, precisamente devido à natureza desinteressada, altruísta e silenciosa da Amizade.
Como referiu Celeste Rodrigues, irmã de Amália, «as perdas — única coisa [que dói]. Não as amorosas [amor romântico]. Essas são a coisa natural da vida. Ninguém é de ninguém. Só há uma coisa que não morre: a amizade» (Público 7 de Setembro de 2014).
3.
É do domínio público as célebres «facadas nas costas» alegadas pelo actual presidente do Governo Regional e líder do maior partido político da Região, Alberto João Jardim. Aqui não interessa opinar sobre o político ou a política, mas tão somente observar a parte humana, que é o essencial neste post sobre o estado da Amizade.
Como afirmou o próprio protagonista, «há uma coisa que é muito sagrada, por mais humilde que seja o seu titular, que é a [A]mizade» (JM de 21 de Janeiro de 2014).
«Um dos meus me meter a faca nas costas?», referiu Alberto João Jardim em entrevista na RTP-Madeira (1 de Julho de 2014), que repetidamente tem falado no assunto, precisamente porque constitui uma desilusão e desgosto devido à deslealdade, abandono, ataque e amarfanhamento na praça pública de que se diz vítima. As «facadas nas costas» podem ferir de morte uma pessoa, porque custa muito a aceitar tal tipo de rejeição.
Na citada entrevista, disse ainda: «eu aceito também ser agredido pelo meu adversário. É a regra do jogo. Agora, um dos meus me meter a faca nas costas? Isso é extremamente doloroso. Não entra nos meus esquemas mentais. Um tipo está do meu lado e, de repente, mete uma faca nas costas. Desde 2012 tem sido uma coisa horrorosa.»
Em 17 Fevereiro de 2014, no JM, denunciava mesmo uma alegada tentativa de assassinato político: «estamos a assistir a parricídio. Tal sucede, quando gente cega pela ambição política, ou pelo oportunismo de tactear como vai salvar o futuro, ou por sobrevivência que não olha a meios, ou ainda pela falta de personalidade em querer enfileirar na moda do «politicamente correcto», cada um, de um momento para outro, trai laços, compromissos, projectos comuns, amizades de antes, só para seu egoísmo e avidez de poder.»
“O tiranete sairá jogado e espezinhado sem dó nem piedade”, previa, face aos eventos no seio do PSD-M, Avelino da Conceição, deputado do PS na ALM, citado no Diário de 23 de Janeiro de 2014. O pior momento do líder e a conjuntura desfavorável é altura para enterrar ainda mais quem já não tem a frescura física de outros tempos.
Perante o desgosto da alegada deslealdade, e vendo as coisas mal paradas, apela ao Povo Madeirense para ajuizar sobre essa traição de que é alvo. «Como se o Povo aceitasse a falta de carácter que o parricídio político revela!», escreveu no JM de 17 de Fevereiro do corrente ano. «Como se o Povo se fosse fiar em traidores e mentirosos, conspiradores quotidianos para se darem ares e pouco sabendo fazer da vida». E antes no JM de 22 de Janeiro: «É bom que a população da Madeira e do Porto Santo não caia numa triste figura de não perceber o que se anda a urdir contra si própria.»
Explica que «ser traído politicamente, levar uma faca nas costas políticas é inadmissível», referiu Alberto João Jardim no JM de 13 de Julho de 2014. «Mostra o carácter das pessoas que o fazem», acrescentou. E exemplificou, no JM de 21 de Julho de 2014: «nas últimas eleições autárquicas, vários [companheiros de partido] do campo derrotado nas eleições internas do PSD em 2012, traíram e, ressabiados, mandaram votar na Oposição - vejam o carácter!... - como ficou provado nos lógicos e legítimos processos que levaram a expulsões.»
Sobre o "cuspir no prato", escreveu-se no JM de 21 de Janeiro do corrente ano: «Indivíduos que sempre estiveram ao meu lado e secundaram todas as minhas decisões ao longo de mais de trinta e cinco anos, agora, só para satisfazerem as suas ambições ou continuarem a servir aqueles a quem se dobram, de um momento para outro passaram a me atacar em público, esquecendo dezenas de anos de solidariedade activa, esquecendo a amizade que sempre lhes dediquei, só para cativarem os apoios dos inimigos do PSD. Isto é falta de carácter!»
Na mesma edição lia-se um apelo, desta vez especificamente para os madeirenses que militam no partido: «E os Militantes sinceros do PSD, os que são autonomistas e sociais-democratas, estão a ver o que se passa, e tenho a certeza de que, na hora própria, darão a resposta adequada a tal tipo de gente».
No Diário de 1 de Março de 2014, o jornalista Miguel Silva diz que «alguns dos que fizeram toda a viagem do ‘jardinismo’ querem saltar do navio como se não fosse nada com eles, como se não estivessem comprometidos.» Escreveu ainda que, «ao ritmo que já vai a tentativa de distanciamento, ainda vamos chegar a uma fase em que a maioria que viveu politicamente à custa ou à sombra do presidente do PSD-M e do Governo, o vai renegar por completo».
Apesar de tudo, o protagonista político prometeu: «não me deixarei intimidar mesmo pelos que, aduladores de muitos anos, agora metem facas nas costas, indiferentes à injustiça»(JM de 21 de Janeiro de 2014).
4. Termino este texto sobre o estado da Amizade com uma passagem do tema Desabafo de Um Qualquer Angolano, de Nástio Mosquito, que em poucas palavras diz o que é essencial ao ser humano, como ser social: «Que se orgulhem de mim, que se lembrem de mim, que se juntem a mim - Amizade».
[Texto actualizado em 8.9.2014]
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