«And some people say that it's just rock 'n' roll. Oh but it gets you right down to your soul» NICK CAVE

domingo, maio 10, 2015

«Fado é Rock 'n' Roll»

Camané é fado com atitude, entrega, visceralidade e densidade como no rock 'n' roll - é um fado que, tal como o rock 'n' roll, não é para qualquer um

Lá vai o tempo em que o fado era sinónimo de música popular num sentido mais ligeiro, vulgar ou popularucho. «[E]u sempre acreditei no fado como uma música de grande qualidade», declarou Camané numa entrevista em 2013, para precisar depois a sua ideia: «O fado não é uma música de cantiguinhas ligeiras: é coisa pesada, rija, forte, com qualidade.»

A propósito do novo álbum, Infinito Presente, na Visão (30.4.2015), o fadista afirmou: «O fado é rock 'n' roll! Quando se começa a cantar tem que se ter aquela coisa rasgada do rock 'n' roll. (...) Os miúdos [novos intérpretes] podem vir com essa atitude no fado, e isso é que é pesado, isso é que vale para fazerem o seu caminho. Acho que foi isso que eu fiz.»

Outro músico, o brasileiro Filipe Catto, dissera ao Público (16.11.2014): «O fado enquanto espírito de algo é o que existe de mais rock’n’roll. E eu estou indo cada vez mais fundo na minha origem, que é o rock’n’roll e o fado simbolizando essa música exasperada que é o samba canção, o tango, o bolero, a toada, o samba. Tudo isso para mim carrega esse elemento de exasperação que é o fado. E o rock’n’roll como postura de entrega e visceralidade absoluta.»

A entrega, a visceralidade e a autenticidade são características comuns ao fado e ao rock 'n' roll. «Eu cresci no meio do fado, tenho uma forma muito característica que é a de ser fadista: a honestidade e a verdade são muito importantes em quem canta este estilo», expressou Camané. «E o Zé Mário [Branco] percebeu isso bem: aprendeu a gostar do fado por causa do [Alfredo] Marceneiro, tal como eu…» (entrevista de 2013). «Para se cantar fado, é essencial ser fadista, cantar com verdade.» «Servir os fados e não se servir dos fados. Para mim cantar é como beber água ou respirar: faz parte da minha vida.» O que é cantado com o coração, chega aos demais corações em ligação directa.

Ainda a sobre o «cantar com verdade», numa entrevista recente ao jornal I (1.5.2015), Camané referiu: «quando vou para o palco interiorizo o que vou cantar e depois não penso em nada, entro no registo emocional de cada fado que estou a cantar.»

O fadista sublinha esta ideia no documentário (making of) de Infinito Presente, parte da edição especial do álbum. «A partir do momento que existem palavras e histórias para contar é preciso que isso seja mais importante do que a exibição vocal.» O intérprete é um veículo e está ao serviço da arte, da emoção, que é algo superior à sua individualidade: «eu não tenho importância nenhuma.»

Insiste que a «ideia é não haver exibição» e «consiga, acima de tudo, sair de mim [libertar-se do ego, de pensar em si], para dar importância àquilo que estou a dizer.» Isto porque «quem está a ouvir não está à espera que eu faça malabarismos», está antes «à espera de ouvir as palavras». Evita, por isso, o já mencionado exibicionismo, para não criar ruído à transmissão da mensagem, que assim chega com mais «facilidade» e «clareza». Tal humildade e sobriedade também elevam Camané e elevam o próprio fado.

Além desta humildade e da referida atitude rock 'n' roll de Camané, que é de uma geração que cresceu a ouvir rock e outras sonoridades contemporâneas, ele «sabia que o fado não é uma coisa popular [ligeira ou folclore]. É música popular portuguesa, mas é outra coisa, é urbana, de Lisboa, e tem um estilo próprio. Não é parecido com mais nada» (jornal I, 1.5.2015).

O fado reflecte uma dada subcultura, cujo nível tem vindo a ser elevado, com mais elaboração e sofisticação. Isto desde que o fado conheceu, por exemplo, novos compositores como Alain Oulman, intérpretes como Amália ou Camané, letras compostas por grandes poetas ou a partir de poemas destes (quando Amália cantou Camões foi um escândalo), executantes instrumentais mais inventivos (como aqueles com que Camané conta: José Manuel Neto na guitarra portuguesa, Carlos Manuel Proença na viola e Carlos Bica no contrabaixo) ou produtores como José Mário Branco, que não permitem haver "azeite" («com o José Mário Branco sei que não há espaço para a ligeireza, a música ligeira, não há "azeite"...», sublinha Camané na já citada Visão de 30.4.2015.)

O fado é uma subcultura num país que, em termos de consumo cultural, é muito superficial, ligeiro e sem preocupação de qualidade e refinamento. Nesse contexto "pimba", Camané é um artista underground. Faz parte de um nicho cultural específico, subterrâneo, urbano. Não é música «fast food» (ligeira ou foleira); tem espessura, profundidade, densidade. O fado, desde que não meta «azeite», está claro, é «música pesada» e de «qualidade».

O fado, com a sua base popular e os seus standards, permite a já referida elaboração (riqueza, qualidade) técnica ao nível da composição, conteúdo poético, execução e interpretação. Como confirma o próprio Camané: «o fado dá para tudo, dá para encaixar tudo, ... é impressionante. Em muitas coisas, o fado é como o jazz. O jazz, e os blues, também têm uma base, os seus standards, mas a partir daí permitem a liberdade toda... É muito assim que vejo o fado» (Visão 30.4.2015). Ora, uma liberdade criativa também inerente ao rock 'n' roll.
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fotografia: olho de fogo Maio 7, 2015

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