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«— A Nina era feliz? - perguntou Catherine.
— Espero que seja feliz - respondeu a rapariga [Marita]. - A felicidade nas pessoas inteligentes é a coisa mais rara que conheço.»
Esta passagem («Happiness in intelligent people is the rarest thing I know») integra o início do capítulo onze do segundo livro póstumo de Ernest Hemingway, The Garden of Eden / O Jardim do Éden, publicado em 1986, vinte e cinco anos após a sua morte.
Álvaro de Campos disse-o em verso: «Estou cansado da inteligência. / Pensar faz mal às emoções». Ou ainda: «Pára, meu coração! / Não penses! Deixa o pensar na cabeça!» Como se razão e coração pudessem ser separados. Faz mal ao coração pensar, faz mal à cabeça sentir? O pensar consciente, realista, sensível e inconformado inquieta a alma e o coração.
Aristóteles já sabia que a inteligência fazia mal às emoções: “All men who have attained excellence in philosophy, in poetry, in art and in politics - even Socrates and Plato - had a melancholic habitus; indeed, some suffered even from melancholic disease.”
No poema Il Penseroso (O Meditativo) de John Milton, o sujeito poético invoca a deusa Melancolia, coberta com um véu negro:
But hail thou Goddess, sage and holy,
Hail divinest Melancholy
Whose Saintly visage is too bright
To hit the Sense of human sight;
And therefore to our weaker view,
O'er laid with black, staid Wisdoms hue. (lines 11–16)
Perante o absurdo da existência, os existencialistas colocavam três caminhos: voltar-lhe as costas, como acabou por fazer Hemingway em 1961, seguir um caminho de conformismo face às normas, significados e metodologias de viver já ditadas/herdadas ou, então, optar pela via do inconformismo: expressar-se de algum modo e criar significado no mundo, marcar a sua individualidade (não se resumir nem ser-se reduzido à existência da multidão/rebanho), ser senhor da sua vida, ser autêntico. Esta terceira via requere algumas ferramentas.
Não é a «inteligência», só por si, em termos de coeficiente, que faz com que a felicidade seja mais rara nos seus titulares. É a inteligência consciente do absurdo da existência e da realidade (o realismo pode causar inquietação e até pessimismo e menor grau da aceitação do estado de coisas); é a inteligência inconformada com os limites colocados por tal existência; é a inteligência dotada de elevada sensibilidade sobre a vida e o mundo; é a inteligência contemplativa e meditativa; é a inteligência com ambições existenciais de expressão, liberdade e autenticidade do eu.
Uma mente que aprofunda o diálogo interior, que elabora mais e se entrega a longas jornadas mentais, com maior acesso à realidade existencial e do eu que percepciona, terá mais dificuldades em aceitar as coisas como são, ignorar certas realidades, encolher os ombros e continuar a viver como se nada fosse.
São pessoas que, geralmente, aprofundam as questões vivenciais e que aspiram mais além ou mais acima («minha alma, se te matei / Perdoa por esta vez. / Fiz-te aspirar tão acima / Que desceste onde hoje vês, a seres um bicho-de-conta / Que te enrolaste de vez» - Bicho de Conta de Luiz de Macedo). E, com isso, pode vir a ansiedade e a angústia, obstáculos à felicidade. E, se calhar, mais criatividade e outras possibilidades de felicidade...
Na introdução d'O Turista Espiritual de Mick Brown pode ler-se: «Aquilo que Connolly chama Angst [termo alemão utilizado em filosofia para o estado recorrente de ansiedade ou angústia] é o acumular das pequenas incertezas sobre o lugar que ocupamos na ordem das coisas, a sensação enervante de que, de algum modo, a vida podia ser melhor, se ao menos, se ao menos.... o quê? É o desassossego do eu.»
No mesmo livro refere-se o seguinte: «"O segredo da felicidade", escreveu Cyril Connolly, "está em evitar a Angst. É um erro considerar que a felicidade é um estado positivo. Afastando a Angst, a condição de toda a infelicidade, ficamos preparados para receber as graças divinas que surjam no nosso caminho."»
Parece que há pessoas, as mais conscientes, meditativas e inconformadas sobre o mundo e a vida, que não se livram da Angst, do Desassossego, da Inquietação, como é ilustrado no Mestre de Álvaro de Campos:
Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos,
Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,
Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos,
[...]
Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.
[...]
Depois tudo é cansaço neste mundo subjectivado,
Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,
Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,
Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.
John Keats escreveu: "Do you not see how necessary a World of Pains and troubles is to school an Intelligence and make it a soul? A Place where the heart must feel and suffer in a thousand diverse ways!" (Excertos das Keats's Letters, datadas de 21 de Abril de 1810).
O que ignoramos não nos afecta, não nos faz sofrer. Daí muitas vezes o elogio da existência simples, sem lucubrações, da ilusão, da superficialidade, do conformismo. «The dumbest creatures are always the happiest...», disse a personagem George Falconer (Colin Firth) no filme A Single Man (2009). Novamente, aqui «dumb» não tem a ver exclusivamente com coeficiente de inteligência. No mesmo poema já citado de Álvaro de Campos lemos o sequinte:
Feliz o homem marçano
Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada,
Que tem a sua vida usual,
Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio,
Que dorme sono,
Que come comida,
Que bebe bebida, e por isso tem alegria.
Por outras palavras, feliz é o homem que não tem inquietações existenciais, inconformismos, nem se entrega a contemplações. Todavia, será que sobreviver basta ao ser humano, que é dotado de razão e que precisa de progredir, de prosperar, de desenvolver-se, conhecer, elevar-se e alcançar objectivos ao longo da seu percurso existencial?
Viver inconsciente, iludido e aceitando tudo (circunstâncias, eventos e a si próprio), tem as suas vantagens, como a libertação da angústia e da consciência das coisas. Há quem prefira, mesmo sendo mais difícil, optar pela densidade, isto é, ser sempre um consciente inconformado e insatisfeito (activo e com os pés e cabeça na realidade), do que um inconsciente iludido e alegre (passivo e na irrealidade), embora no conforto do conformismo prático.
Todavia, nem é uma questão de escolha: é de ser quem se é, de se ser autêntico. Como pode alguém ser quem não é? N'O Jardim do Éden de Ernest Hemingway podemos ler: «When you start to live outside yourself, it's all dangerous.»
--
A propósito:
«O detalhe é sempre mau» (really?)
Na solidão, triste e desiludido: a morte dos grandes pensadores em meia dúzia de tristes fins
«— A Nina era feliz? - perguntou Catherine.
— Espero que seja feliz - respondeu a rapariga [Marita]. - A felicidade nas pessoas inteligentes é a coisa mais rara que conheço.»
Esta passagem («Happiness in intelligent people is the rarest thing I know») integra o início do capítulo onze do segundo livro póstumo de Ernest Hemingway, The Garden of Eden / O Jardim do Éden, publicado em 1986, vinte e cinco anos após a sua morte.
Álvaro de Campos disse-o em verso: «Estou cansado da inteligência. / Pensar faz mal às emoções». Ou ainda: «Pára, meu coração! / Não penses! Deixa o pensar na cabeça!» Como se razão e coração pudessem ser separados. Faz mal ao coração pensar, faz mal à cabeça sentir? O pensar consciente, realista, sensível e inconformado inquieta a alma e o coração.
Aristóteles já sabia que a inteligência fazia mal às emoções: “All men who have attained excellence in philosophy, in poetry, in art and in politics - even Socrates and Plato - had a melancholic habitus; indeed, some suffered even from melancholic disease.”
No poema Il Penseroso (O Meditativo) de John Milton, o sujeito poético invoca a deusa Melancolia, coberta com um véu negro:
But hail thou Goddess, sage and holy,
Hail divinest Melancholy
Whose Saintly visage is too bright
To hit the Sense of human sight;
And therefore to our weaker view,
O'er laid with black, staid Wisdoms hue. (lines 11–16)
Perante o absurdo da existência, os existencialistas colocavam três caminhos: voltar-lhe as costas, como acabou por fazer Hemingway em 1961, seguir um caminho de conformismo face às normas, significados e metodologias de viver já ditadas/herdadas ou, então, optar pela via do inconformismo: expressar-se de algum modo e criar significado no mundo, marcar a sua individualidade (não se resumir nem ser-se reduzido à existência da multidão/rebanho), ser senhor da sua vida, ser autêntico. Esta terceira via requere algumas ferramentas.
Não é a «inteligência», só por si, em termos de coeficiente, que faz com que a felicidade seja mais rara nos seus titulares. É a inteligência consciente do absurdo da existência e da realidade (o realismo pode causar inquietação e até pessimismo e menor grau da aceitação do estado de coisas); é a inteligência inconformada com os limites colocados por tal existência; é a inteligência dotada de elevada sensibilidade sobre a vida e o mundo; é a inteligência contemplativa e meditativa; é a inteligência com ambições existenciais de expressão, liberdade e autenticidade do eu.
Uma mente que aprofunda o diálogo interior, que elabora mais e se entrega a longas jornadas mentais, com maior acesso à realidade existencial e do eu que percepciona, terá mais dificuldades em aceitar as coisas como são, ignorar certas realidades, encolher os ombros e continuar a viver como se nada fosse.
São pessoas que, geralmente, aprofundam as questões vivenciais e que aspiram mais além ou mais acima («minha alma, se te matei / Perdoa por esta vez. / Fiz-te aspirar tão acima / Que desceste onde hoje vês, a seres um bicho-de-conta / Que te enrolaste de vez» - Bicho de Conta de Luiz de Macedo). E, com isso, pode vir a ansiedade e a angústia, obstáculos à felicidade. E, se calhar, mais criatividade e outras possibilidades de felicidade...
Na introdução d'O Turista Espiritual de Mick Brown pode ler-se: «Aquilo que Connolly chama Angst [termo alemão utilizado em filosofia para o estado recorrente de ansiedade ou angústia] é o acumular das pequenas incertezas sobre o lugar que ocupamos na ordem das coisas, a sensação enervante de que, de algum modo, a vida podia ser melhor, se ao menos, se ao menos.... o quê? É o desassossego do eu.»
No mesmo livro refere-se o seguinte: «"O segredo da felicidade", escreveu Cyril Connolly, "está em evitar a Angst. É um erro considerar que a felicidade é um estado positivo. Afastando a Angst, a condição de toda a infelicidade, ficamos preparados para receber as graças divinas que surjam no nosso caminho."»
Parece que há pessoas, as mais conscientes, meditativas e inconformadas sobre o mundo e a vida, que não se livram da Angst, do Desassossego, da Inquietação, como é ilustrado no Mestre de Álvaro de Campos:
Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos,
Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,
Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos,
[...]
Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.
[...]
Depois tudo é cansaço neste mundo subjectivado,
Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,
Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,
Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.
John Keats escreveu: "Do you not see how necessary a World of Pains and troubles is to school an Intelligence and make it a soul? A Place where the heart must feel and suffer in a thousand diverse ways!" (Excertos das Keats's Letters, datadas de 21 de Abril de 1810).
O que ignoramos não nos afecta, não nos faz sofrer. Daí muitas vezes o elogio da existência simples, sem lucubrações, da ilusão, da superficialidade, do conformismo. «The dumbest creatures are always the happiest...», disse a personagem George Falconer (Colin Firth) no filme A Single Man (2009). Novamente, aqui «dumb» não tem a ver exclusivamente com coeficiente de inteligência. No mesmo poema já citado de Álvaro de Campos lemos o sequinte:
Feliz o homem marçano
Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada,
Que tem a sua vida usual,
Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio,
Que dorme sono,
Que come comida,
Que bebe bebida, e por isso tem alegria.
Por outras palavras, feliz é o homem que não tem inquietações existenciais, inconformismos, nem se entrega a contemplações. Todavia, será que sobreviver basta ao ser humano, que é dotado de razão e que precisa de progredir, de prosperar, de desenvolver-se, conhecer, elevar-se e alcançar objectivos ao longo da seu percurso existencial?
Viver inconsciente, iludido e aceitando tudo (circunstâncias, eventos e a si próprio), tem as suas vantagens, como a libertação da angústia e da consciência das coisas. Há quem prefira, mesmo sendo mais difícil, optar pela densidade, isto é, ser sempre um consciente inconformado e insatisfeito (activo e com os pés e cabeça na realidade), do que um inconsciente iludido e alegre (passivo e na irrealidade), embora no conforto do conformismo prático.
Todavia, nem é uma questão de escolha: é de ser quem se é, de se ser autêntico. Como pode alguém ser quem não é? N'O Jardim do Éden de Ernest Hemingway podemos ler: «When you start to live outside yourself, it's all dangerous.»
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A propósito:
«O detalhe é sempre mau» (really?)
Na solidão, triste e desiludido: a morte dos grandes pensadores em meia dúzia de tristes fins
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