in «Palavras do Livro do Desassossego» de Bernardo Soares (Fernando Pessoa): Edições Centro Atlântico, com edição de Libório Manuel Silva |
Este texto é a parte dois do post anterior intitulado «A felicidade nas pessoas inteligentes é a coisa mais rara que conheço», que será tendencial para a inteligência consciente, analítica, com uma «lente forte» sobre a Realidade e a Existência.
Quando Fernando Pessoa, ele mesmo um «espírito altamente analítico» e uma inteligência profundamente consciente e meditativa, afirma, através do heterónimo Bernardo Soares, que o «detalhe é sempre mau», dado que «os espíritos altamente analíticos vêem (quase que) só defeitos: quanto mais forte a lente, mais imperfeita se mostra a coisa observada», o que quer dizer?
Antes de mais, é uma frase com que muitas pessoas concordariam. À letra, é como se ele estivesse a dizer algo como «felizes ou bem-aventurados os pobres (humildes, simples) de espírito, porque deles é o Reino dos Céus». Isto é, o bom é não analisar e não ver o detalhe, ficar pela rama, para alguns dominarem a manipularem os simples e humildes... Quem domina não interessa, cá neste mundo terreno passageiro e inferior. O interesse é viver de forma simples para ganhar o outro mundo, o Céu. Esse sim, tem valor (mas nem os crentes, em circunstâncias normais, querem deixar este mundo quando chega a sua hora... e por alguma razão choramos quando um ente querido parte, apesar de ir para o Céu). E assim é mais fácil a aceitação da ordem natural e não-natural das coisas.
Discordo de Fernando Pessoa quanto ao «detalhe» e ao «espírito altamente analítico» ser «sempre mau», porque até o detalhe pode fazer toda a diferença entre talento e o não-talento ou entre a vida e a morte (basta pensar, por exemplo, no trabalho de um cirurgião). Nessa ordem de ideias a inteligência também seria má. Nem Pessoa acreditava nisso. Bem pelo contrário. É um desabafo no sentido de, em certas alturas, desejar não ver tanto detalhe (ter tanta consciência das coisas) que o inquietava. Detalhe como prisão e não como uma forma de liberdade e elevação. Não há bela sem senão. Não há nada perfeito e exacto.
Em certo sentido, seria mais fácil, emocionalmente, não pensar, ver tanto ou ser livre. Recupero o «Feliz o homem marçano» que «tem a sua vida usual, / Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio, / Que dorme sono, / Que come comida, / Que bebe bebida, e por isso tem alegria.» Nada de metafísicas... basta as formas de amparo, consolo, escape e alienação (permitidas) face à realidade existencial, esta que termina sempre na morte.
Quem analisa (está só com os seus pensamentos e lucubrações), faz perguntas (a minha vida não pode ser diferente?) e tem ideias perturbadoras, malucas e perigosas, convém ser integrado num colectivo para que, juntos, todos pensem os pensamentos que todos pensam. Pensamentos normais. Os de sempre. O mesmo. «Sobre o que conversam os cavalos domésticos nas colónias de férias? Eles conversam sobre cabrestos, arreios, carroças, cavaleiros, carroceiros... E, assim, os cavalos selvagens continuam enterrados...», diz Rubem Alves no livro Se eu pudesse viver a minha vida novamente... (Edições ASA, 2005).
A igreja instituição, e aqui não se critica a necessidade da espiritualidade por parte do Homem, que é algo pessoal e íntimo, diz que o humilde e simples será preferido ao sábio que acredita mais em sim mesmo do que em Deus. Consubstancia uma desvalorização do muito saber e da própria vida neste mundo material (uma ilusão) face à transcendência, onde reside o sentido da vida, onde a vida é eterna e não termina na morte. Porque a humildade é uma atitude de submissão (a Deus). A submissão ao dictato divino (e à comunidade/autoridade religiosa) é a chave, para permitir os reinos e os reinados.
E então diz-se que a felicidade do homem se faz com a humildade de espírito e a riqueza das qualidades morais, que o fazem um cordeirinho... Esses humildes têm as riquezas morais e os outros deitam mão às riquezas terrenas, materiais. Uns aproveitam a vida, o momento presente neste mundo, fazem um festim e vivem em pleno, enquanto os outros carregam a cruz para ganhar o outro mundo que há-de vir, o verdadeiro.
Assim, quando se defende que o «detalhe» é mau (um demónio), e que deve ser evitado, pretende-se a malta anestesiada, submissa, controlada. Quem tem olho (vê o detalhe), numa terra de cegos (quem não vê defeitos), é rei. Oliveira Salazar não diria melhor. Não vale a pena saber muito... ou ler certos livros... ou entregar-se a análises que ponham em causa a ordem das coisas... Só faz mal às emoções e atrapalha a felicidade.
E a história de que os espíritos analíticos vêem só defeitos é uma falácia porque vêem mais e melhor tanto os defeitos (negativo) como tudo o resto (positivo). Tudo faz parte da realidade. É claro que ver certos detalhes não dá nada jeito aos poderes (dictactos) e há formas de desmotivar (e até reduzir o autoconceito) desses espíritos dados à actividade detalhística... Para haver menos motivação para lutar contra as injustiças.
A religião organizada ou o comunismo, para dar dois exemplos de certa forma em extremos opostos, têm em comum o preterir desses «espíritos analíticos» individuais, que pensam por si próprios, que são independentes (os tais solitários), e enaltecem o colectivo, o colegial, o comunitário. Nada de solidão contemplativa onde florescem os pensamentos (perigosos). A ociosidade não é declarada como a mãe de todos os vícios? Mais uma vez a questão central da submissão a um dictato (colectivo, neste caso, mas que tem sempre uma cabeça, uma liderança, uma individualidade ou elite), mas como observou Nietzsche, «nos indivíduos, a loucura é algo raro - mas nos grupos, nos partidos, nos povos, nas épocas, é regra.»
E não se pense que o «detalhista» solitário, isto é, o rebelde, fica impune. Ele não pode vencer, até porque está em desvantagem face ao corpo colectivo - não há exércitos de um homem só. Há custos existenciais para quem resiste e teima em contrariar o impulso/pressão herdado para o conformismo e a natureza social inerente e instintiva no ser humano. Pode fazê-lo sentir rejeição, raiva, ressentimento, amargura, desdém, revolta e, até, misantropia. «Todo o revolucionário é associal, se o impulso for nele um desvio da vida instintiva, e não uma atitude de homem capaz de obedecer e mandar a si próprio», referiu Agustina Bessa-Luís, a respeito da construção da personalidade criadora, in Alegria do Mundo.
A resistência aos conformismos colectivos pode tornar o rebelde em algo ainda mais desprezível do que tenta não ser, porque ele não se revolta apenas face a uma dada sociedade, mas contra algo essencial no ser humano: a sua natureza ou instinto social. Daí a rejeição (o desprezo pelos companheiros) ser um castigo duro.
Mas, também há benefícios, como a autenticidade (verdade) e máxima expressão do eu no mundo. «Sozinho, um homem ganha espessura, em grupo, perde-a — ganha apenas companheiros», lê-se Gonçalo M. Tavares em Uma Viagem à Índia (p. 268, Canto VI - 56, Editorial Caminho 2010, 1.ª edição). A autenticidade e a «espessura» traz paz interior e liberdade. Não será a liberdade algo que faz parte da essência do ser humano? Ser humano é ser livre? Jean-Paul Sartre afirmou: «man is freedom»; «we are condemned to be free». Portanto, a existência é feita de solidão (individualidade) e de socialização (colectivo): cada qual equilibra ou não da forma que se sente autêntico e feliz. O que deve merecer o respeito alheio. O tempo de solidão é encarado como incómodo, infelicidade ou uma atitude anti-social.
Retomando o «detalhe», podemos dar até o benefício da dúvida a Pessoa e pensar que ele está mais preocupado no bem-estar pessoal (e social) dos espíritos analíticos, que se podem cansar, perturbar e inquietar com o muito que vêem, mas não gosto da ideia... Se for o próprio indivíduo a decidir que não quer analisar e ver o detalhe é uma coisa, se forem terceiros a impor se deve ver ou não o detalhe, será algo totalmente inaceitável.
Na verdade, são formas de dominar as massas, pois como defendia o já citado Nietzsche, nada mais terrível do que a supremacia das massas... Ele defendia ainda o tal super-homem (individual), com capacidades acima dos outros, a quem caberia o dever de elevar-se além dos limites estabelecidos pela normalidade. Homem como um deus. Uma blasfémia.
A fragilidade e vulnerabilidade da vida (a omnipotência humana acaba, um dia, por tombar perante a inexorável passagem do tempo, a doença, a crepitude, o sofrimento e a morte) são uma fatalidade e a condição, e ainda a chantagem, implacáveis, para acomodar e conformar o Homem toda uma vida. Tudo acaba, inclusive a tal omnipotência humana, que é aparente e efémera. Mas pode ser aproveitada enquanto dura, porque, no fim, tanto caem (sofrem e morrem) os omnipotentes como os humildes e servis... Porquê viver com medo, acanhado, subserviente, se o sofrimento e o fim são certos, um dia? Com respeito e ciente da nossa pequenez perante o Universo e a Existência, mas sem medo, sem se anular e vivendo/expressando-se na máxima potência da vida.
Apesar de tudo, o detalhe é uma bênção: mesmo que algum desassossego do eu não seja evitado, o detalhe faz a diferença desde que não perturbe a musicalidade (harmonia) necessária ao indivíduo. Só tenho pena de não ver ainda mais detalhe, mesmo que este seja passível de perturbar a felicidade do indivíduo «analítico», quando não consegue evitar a inquietação, os detalhes menores ou acessórios e assegurar a referida musicalidade vivencial.
Triste mesmo é a cegueira (ilusão e aceitação irreflectida), mesmo que o indivíduo seja alegre, tenha maior conforto psíquico e social, e o caminho seja mais fácil e tranquilo, numa vida mecanizada (casa - trabalho - casa - cemitério), ditada por outros e sem espaço para questionamento. É tipo, se soubesses o que custa ver o detalhe, nunca o quererias ver...
Por algum motivo a opção de tirar «jovens sem ocupação de tempos livres, esfregando os rabos pelas esquinas da baixa citadina, fumando “passa” e cultivando angústias existenciais (tão “progressista”!...)», neste caso por via da actividade desportiva. E poderia passar por outras culturas, que não só a desportiva, até porque se pode argumentar que «a única eternidade terrena é a cultura», que também confere sentido, amparo e alegria à vida). Mas certa cultura e certo saber são mais perigosos...
Desde que não saia de controlo, qualquer governo terreno promove ou condescende com os muitos e variados ópios do povo (escapes), uma forma de a malta deitar as energias cá para fora e fazer a catarse de frustrações e angústias várias, nomeadamente as que são derivadas da dominação e restrição de liberdades individuais (mesmo as bem intencionadas). Ou tão somente libertar a energia central no ser humano, a líbido, que impulsiona a vida, como documentou Freud. E assim se evitam frustrações, questionamentos e a proliferação de rebeldes.
Por outro lado, apesar de o dizerem, nem toda a gente quer liberdade nem detalhe. Citando de novo Rubem Alves, a «liberdade [ou o detalhe] traz muita confusão à cabeça. Melhores são as rotinas que nos livram da maçada de ter que tomar decisões sobre o que fazer com a liberdade [e o detalhe]. Quem tem rotinas não precisa de tomar decisões. A vida já está decidida. O cavaleiro nem precisa de puxar a rédea: o cavalo sabe o caminho a seguir.» Há cavalos que até sentem «saudades do arreio e da carroça, querem voltar, porque se cansam da liberdade [do detalhe].»
[Texto afinado em alguns detalhes :-) em 28.8.2014]
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A propósito:
«A felicidade nas pessoas inteligentes é a coisa mais rara que conheço»
Na solidão, triste e desiludido: a morte dos grandes pensadores em meia dúzia de tristes fins
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