«And some people say that it's just rock 'n' roll. Oh but it gets you right down to your soul» NICK CAVE

terça-feira, junho 27, 2006

152. Verdade das palavras abalizadas II



Jardim do Mar

A entrevista publicada hoje, no Diário de Notícias, a Pedro Bicudo, professor de Física do Instituto Superior Técnico de Lisboa (ver currículo no post anterior), contribui para o esclarecimento da opinião pública. Embora se continue a restringir ao elemento surf as consequências de determinadas intervenções no litoral, como no caso emblemático do Jardim do Mar. As consequências não são apenas desportivas, é bom não esquecer. Há outras mais profundas.
Destaque-se algumas coisas da entrevista, devidamente citadas, numa releitura por tópicos e comentada:

1. Ausência de resposta cooperante
Em 19 de Setembro de 2003, Pedro Bicudo, após a Cimeira e da Marcha do Litoral abordou informalmente o secretário Regional do Ambiente. O artigo do Diário de Notícias refere que o professor «já escreveu a entidades regionais oferecendo os seus serviços, mas até ao momento não obteve resposta.» Há três anos que tenta cooperar mas sem resposta. Seria bom existir abertura e interesse quando se trata de uma abordagem construtiva e sustentada.
Seria bom que a acção dos cidadãos não fosse tão politizada e justificada à luz de um qualquer ataque político. Seria postivo que a discordância não fosse entendida como ataque e estar contra tudo.

2. Madeira não quer, Cascais quer
A Madeira não quer o turismo que pensa ser de pata-rapada ou pé-descalço. Cascais quer. Até ao ponto de se estar a «estudar a melhor forma para dotar uma certa zona do litoral com as ondas que atraem os turistas, dado que há interesse da Câmara Municipal local em apoiar a projecção de uma onda nova através do recurso a uma "tecnologia nova já aplicada na Austrália, Nova Zelândia, Califórnia e Brasil."
Na Madeira, as «intervenções humanas recentes [...] não tiveram em conta a prática daquela modalidade [surf].»

3. «O que a Natureza dá não precisa ser feito» (Siza Vieira, arquitecto)
A natureza deu à Madeira recursos paisagísticos e recursos naturais únicos (a custo zero e sem necessidade de manutenção) para a prática do surf. Vamos dando cabo deles (com custos a curto, médio e a longo prazo) enquanto outros gastam milhões a projectar e a construir ondas.
O que Pedro Bicudo propõe é reconstruir as condições destruídas, que serão difíceis do ponto de vista financeiro para a Madeira, embora Pedro Bicudo afirme que se justifica porque o «surf é um desporto com um enorme potencial de crescimento.»
Destruir o que a natureza dá para depois o refazer artificialmente parece absurdo. Mas os absurdos acontecem. Há mesmo países a procurar melhorar as condições para a prática do surf, recorrendo a meios artificiais. Quem os tem oferecidos pela natureza muitas vezes não os valoriza nem rentabiliza economicamente.
Depois de assaltada a casa, colocam-se trancas na porta: recorde-se que o Surf faz parte do Plano de Desenvolvimento da Madeira para 2007-2013. Vide
aqui.

4. Afinal, o surf tem valor económico
«O rendimento médio dos turistas que praticam surf ultrapassa em muito o rendimento médio nacional», diz Pedro Bicudo.
Afinal o surf tem valor económico (como nicho de mercado turístico que é - que a Madeira e alguns dos seus concelhos e freguesias desprezam, depois da euforia dos primeiros tempos ao ponto de terem patrocinado campeonatos de surf com base na promoção que faziam da Região e pelo retorno económico... já ninguém se lembra?) e os surfistas não são os pé-descalço que muitos imaginavam (a este propósito vide os posts «Pata rapada» 2 e «Pata rapada» 1).
Pois, «onde se pratica mais surf é nalguns dos países mais ricos do mundo»: América, Austrália ou França.

5. Madeira não quer, Brasil e África do Sul querem
Segundo Pedro Bicudo, há destinos turísticos que se estão especializando na oferta do surf, exemplificando com os casos do Brasil e da África do Sul.

6. Surf, actividade económica cresce em Portugal
Em Portugal, «é em torno do surf que "uma das poucas actividades económicas tem crescido rapidamente todos os anos."»

7. Surf pode dar tanto dinheiro como o ski nos Alpes
Pedro Bicudo, segundo previsões de organismos internacionais ligados ao turismo, alerta ainda que o surf pode «vir a ter o mesmo valor económico que o ski tem nos Alpes.» Por isso o surf estar a ser encarado «como um desporto com muito potencial económico». «Uma mais-valia que a Madeira está a perder», remata o professor.

8. Afinal, já não há o mesmo surf no Jardim do Mar
A ideia que o surf continua igual no Jardim do Mar (Ponta Jardim) tem sido vendida, mas a realidade é confirmada de viva voz pelos surfistas. Pedro Bicudo é mais uma voz abalizada a colocar verdade nas palavras.
«Ainda se consegue "fazer lá surf, mas em muito piores condições. É como se tivessem decidido tapar metade do campo de futebol do Estádio do Barreiros. Se o fizessem, este recinto desportivo apenas passaria a servir para treinos e não para jogos de futebol". E é "isso que se está a passar actualmente no Jardim do Mar ou no Lugar de Baixo: treinos."»
Pois, as tais condições únicas do Hawai europeu foram cano abaixo. As ondas não fugiram, mas estão comprometidas as condições únicas. «Antes eram das melhores ondas do mundo, agora são umas ondas banais. E se continuarem a fazer obras se calhar desaparecem», sublinha Pedro Bicudo.
Por isso, «perdeu-se o seu valor [das ondas] naqueles locais, pois já não podem, por exemplo, acolher campeonatos nem as estruturas turísticas que acompanham esses eventos desportivos

9. Onda da Ponta Jardim era o cartaz
A onda do Jardim do Mar (Ponta Jardim) era a onda emblemática, como nota Pedro Bicudo, que servia de grande cartaz e de atractivo aos surfistas. E o que fazia da Madeira única a este nível foi comprometido, apesar de todos os alertas e propostas de compromisso para evitar, ao menos, que a estrada/promenade do Jardim do Mar tivesse de entrar mar adentro (um dia destes será clara mais alguma razão da insistência no radicalismo de tal intervenção, de ter ido para cima do mar, de ter tomado toda a praia de calhau e consquistado umas dezenas de metros ao mar... aguarde-se pacientemente, não tarda).

NOTA:
O Olho de Fogo tem seguido toda a problemática à volta do surf (vide arquivos de Maio e Junho), despoletado pelo filme documentário "Lost Jewel of the Atlantic", produzido pela Save the Waves, ainda não visionado na Madeira - o que não quer dizer que não tenha já sido visionado por madeirenses, nomeadamente nas recentes mostras em Espanha e França, em festivais de cinema.
O episódio à volta do filme tem o mérito de ter gerado discussão, recolocado em cima da mesa um assunto que já se pensaria enterrado, exposto a fragilidade de certas posições, ter dado oportunidade para fazer balanços e clarificar uma série de coisas que não tinham ainda sido clarificadas por força da batalha campal gerada em 2002-03, para que a força da razão e dos argumentos de uma das partes não fosse audível e perceptível pela opinião pública.

Sem comentários:

Enviar um comentário