Ninguém poderá colocar em causa a corajosa participação dos madeirenses na Revolta da Madeira, quanto muito questionar a extensão do seu papel no engendramento, estratégia política e liderança da revolta.
No aniversário da Revolta de 4 de Abril de 1931, o Diário traz hoje um artigo que sublinha a participação dos madeirenses face às leituras que têm sido feitas pelos ditos «saudosos de salazar» e «pseudo-intelectuais» anti-autonomistas. Os factos históricos são lidos de diferentes perspectivas.
Com a reserva de não conhecer os relatos históricos profundamente - é pena não se ver este assunto tratado de forma equidistante (científica), sem visões centralistas, esquerdistas, saudosistas de salazar, autonomistas, anti-autonomistas, entre outras -, o pouco que tenho lido sobre o assunto, como leigo na matéria, permitiu desenvolver alguma síntese, mas sobretudo dúvida ou problematização (revoltas de 1931), que pode estar enviesada, na falta de beber mais factos na fonte. Haveremos de lá chegar.
O artigo do Diário de hoje refere que há quem defenda que os «madeirenses não tomaram parte Revolta da Madeira de 1931, sob alegação de que isso foi obra exclusivamente de deportados políticos.» Ninguém poderá colocar em causa a participação e a adesão dos madeirenses, quanto muito questionar a extensão do seu papel no engendramento, estratégia política e liderança da revolta. Não foram apenas os deportados que fizeram a revolta de 4 de Abril mas, provavelmente, foram o rastilho, o impulso político original. Terá havido uma simbiose entre a revolta pela sobrevivência da população, devido à profunda situação de crise económica e social da época, e a revolta política contra o regime ditatorial por parte de uma elite militar e civil, composta por deportados políticos do Continente e por madeirenses. As duas dimensões da contestação encaixaram-se e serviram de combustível uma à outra.
A Revolta da Farinha, dois meses antes, colocara a população "no ponto" para a adesão a uma acção de maiores proporções, como viria a ser a Revolta da Madeira. Como notou ontem João Soares (autor do livro Revolta da Madeira), em Lisboa, «os jovens oficiais que tinham desembarcado para reprimir a 'Revolta da Farinha', mas que também tinham uma "costela revolucionária", observou ainda João Soares, mais os deportados militares que já se encontravam na Ilha, fizeram o resto» (Diário, 4.4.2007).
Os deportados políticos (civis e militares) do Continente, então na Madeira, mesmo com um currículo de espírito e actos revoltosos contra a ditadura, não poderiam fazer a revolta sozinhos. Precisavam da adesão popular e, para tal, de uma elite militar e civil local (madeirense) para fazer a ponte com os populares. Faltará esclarecer o papel preciso dos militares madeirenses e alguns civis nessa elite revoltosa. O povo deu corpo e dimensão à revolta. As revoluções não são feitas pelo povo mas não têm sucesso sem a adesão do povo. Essa adesão é histórica. E a elite na Madeira chamada igreja e ingleses? Por acaso sabe-se de que lado estiveram na Revolta da Madeira? Que interesses defendiam e defenderam? Por acaso defenderam a libertação da ditadura ou fizeram o jogo que mais convinha?
Quando se refere, como João Soares declarou ontem, que a «Revolta da Madeira foi a única que se conseguiu aguentar mais de 24 horas», sem menosprezar o seu mérito e magnitude, tal deve-se também, além da participação e apoio populares, é óbvio, a razões geográficas, tendo em conta a insularidade (mais fácil circunscrever e menor perigo de contaminar o resto do território) e o tempo de fazer deslocar para a Madeira uma força militar de repressão. As tropas fiéis ao regime foram ainda reprimir, em primeiro lugar, a revolta nos Açores. Tudo ajudará a explicar a duração dos 28 dias da revolta.
O que não é verosímil, além de uma elite local (militar e civil) muito restrita influenciada por uma elite continental anti-ditadura então na Madeira, é a existência da massa crítica, espírito revoltoso, insurreição, ausência de medo, inconformismo ou irreverência natural (para além ou exceptuando aquela revolta visceral espicaçada pela fome), que muitas vezes se atribui ao povo madeirense de 1931. Seria interessante conhecer melhor a motivação popular na altura: além da luta pela sobrevivência (pão), houve um consciente pensamento político anti-ditadura, autonomista e até independentista?
Se hoje a massa crítica é quase inexistente, não é fácil imaginar que existisse há 76 anos, numa população iletrada, resignada, submissa e com poucos horizontes, sob a canga do domínio da igreja omnipotente, dos senhorios e sob o trabalho duro, na luta diária pela sobrevivência. Quando ainda sabemos que o madeirense gosta de estar a bem com deus e com o diabo, tende a divinizar a autoridade (gosta do pai protector) e a ter uma posição expectante perante os acontecimentos até ver no que dá. O que foi feito da coragem de adesão à luta e à auto-determinação dos madeirenses de 1931, mesmo que estimulados e conduzidos por deportados revoltosos anti-ditadura?
A saída à rua do povo em 1931 é relevante, não há dúvidas. Actualmente, pelo contrário, os grandes ajuntamentos populares no Funchal acontecem para ver fogo de artifício ou ver barcos chegar, talvez porque depois de 1974 tem havido prosperidade ("barriguinha cheia, coração contente"). Não tem havido falta de pão. Há quem se queixe que os madeirenses estão amolecidos.
Não é crível ainda que a população tivesse uma latente vontade política de liberdade e democracia. Se assim fosse, se tivesse havido um pulsante espírito de revolta e um desejo de liberdade e democracia, deveriam ter ocorrido mais actos revoltosos até ao final da ditadura em 1974. Passaram-se 43 (!) anos de normalidade sob o regime de Salazar. O que aconteceu na Revolta da Farinha (e, por arrastamento, na Revolta da Madeira) terá sido "barriguinha vazia, coração descontente." Essa coisa chamada liberdade é secundária, demasiado esotérica e transcendental, não enche barriga. A nossa canção não diz «deixai passar esta nossa brincadeira»?
Não se esqueça que o episódio da Madeira vem na sequência de várias tentativas no país para derrubar a ditadura, não é um acto isolado. Será que o povo e as elites madeirenses continuaram a lutar contra a ditadura depois dessa data, na clandestinidade, enquanto não chegava o 25 de Abril de 1974? Nos anos 50, 60 e 70, a vida foi difícil na Madeira, com mortos na guerra colonial, não gerou revoltas ou lutas contra Salazar, mas sim emigração em massa. A FLAMA apreceu, não para combater a ditadura, já derrubada pelo 25 de Abril, mas para combater a ameaça comunista.
1931: o ano de todas as revoltas
Cronologia
Revolta da Madeira 1931
Lembrai, lembrai o 4 de Abril
Revoltas de 1931
Pelo silêncio e pela acomodação
madeirenses revoltosos?
O "povo" infelizmente vai na onda (qualquer que ela seja) pelo que não se pode dizer que apoiou. Uma coisa é apoiar outra mostrar-se indiferente e ainda outra oferecer alguma resistência verbal e mental. Diria que o "povo" seguiu a sua vida independentemente de quem eram as novas "autoridades".
ResponderEliminarComo sempre, a história veicula as visões e pretensões daqueles que a registam. Parabéns pela excelente reflexão critica à volta desses registos!
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