«And some people say that it's just rock 'n' roll. Oh but it gets you right down to your soul» NICK CAVE

segunda-feira, agosto 29, 2011

Medo intrínseco e não apenas extrínseco

O poder tem a sua culpa mas isso não desculpabiliza a responsabilidade dos madeirenses, que se colocaram e acomodaram nas mãos de um destino 

«cada homem tem, de modo telegráfico, as duas faces:
tem medo e mete medo.
Um homem unilateralmente corajoso não existe,
a não ser que seja unilateralmente pouco inteligente.
É que o raciocínio começa no abc de estar vivo:
quando vês o abismo alto, deves afastar-te cuidadosamente.
Eis tudo. Ou quase.»
[Gonçalo M. Tavares in "Uma Viagem à Índia" (2010) p266]

 

Tendo em conta as Leis da natureza humana, não se pense que anda toda a gente desejosa de libertação e incomodada com medos. É preciso ver outras dimensões do problema do medo. O poder, que não pode tudo, também reflecte as pessoas e as sociedades. Há uma simbiose, um engajamento mútuo de conveniência, que só será quebrado quando uma das partes se ver perante o «abismo alto», isto é, tiver pouco ganhar e pouco interesse na situação.

Isto para contrariar a tese que foi avançada pelo Padre José Luís Rodrigues, ontem no Diário (28.8.2011), de que o medo na sociedade madeirense «resultou de anos e anos de um trabalho muito bem pensado para dominar e tomar conta de toda a realidade», como se o medo dentro da cabeça dos madeirenses fosse resultado apenas (ou até sobretudo) da acção de entidades exteriores ao indivíduo. Embora refira que há «quem se deixa intimidar».

O poder democrático é eleito, não tem toda a culpa. Diria mesmo que há quem nasça já intimidado... há medo endémico... vem nos genes, na cultura, tem raízes profundas e remotas. Os madeirenses não são apenas vítimas do poder. Não gosto desta ideia desculpabilizante dos coitadinhos e indefesos, como se as pessoas fossem ingénuas, inaptas ou mesmo imbecis (rebanho) e não fossem capazes de ajuizar e escolher, em consciência e com lucidez... Como se nada pudessem fazer. Como se a mudança não estivesse nas suas mãos.

(Já concordo em pleno com o Padre José Luís Rodrigues quando diz que «sem esta libertação [do medo], não ganharemos dignidade». Porque «deixar-se dominar por este medo acarreta sempre a embriaguez das obsessões e complexos que conduzem à indignidade.» E a «dignidade perante todos os interesses é o bem maior que a vida nos deu. Assim, amemos a dignidade com todas as nossas forças e não permitamos que nos verguem ao medo.»)

Como já tinha alertado em Submissos não são inocentes, a opressão não pode ser justificada apenas pelo carácter e características dos opressores. O carácter e características dos oprimidos, com múltiplas origens, também criam o terreno propício para o surgimento de dominadores. São os tais mecanismos de submissão, entre eles a falta de massa crítica e inacção cívica, que propiciam o exercício do domínio por outrem.

Esses mecanismos de submissão fazem parte da antropologia madeirense, um povo que se fundiu com as próprias cangas que carrega às costas há séculos. É um estado comatoso. O madeirense, que é capaz de matar por causa da água de rega, mantém-se cego, surdo e mudo perante o resto. Toca a bailar o Baile Pesado. Uma triste forma de vida... Tristes e cautelosos a olhar para o chão como nas procissões.

Nem as consequências para a sobrevivência, nem a pobreza e as condições de vida levam as pessoas a a agir para defender o presente e futuro dos próprios filhos. Descem à rua apenas para ver barcos, aviões acrobáticos e fogo-de-artifício na baía do Funchal.

Será o medo que está na origem da ausência de massa crítica e inércia cívica na sociedade madeirense ou será a ausência destas que origina o medo? Há muitos mecanismos de submissão voluntária na sociedade madeirense, que é terreno propício para o exercício do poder de forma musculada.

Rosa Montero, no romance "A Louca da Casa", escreve que «ir contra a corrente geral é uma coisa bastante incómoda. É possível que a maior parte das misérias morais e intelectuais se cometam por isso, para não contradizer as ideias dos nossos patronos, vizinhos, amigos. Um pensamento independente é um lugar solitário e ventoso.»

Diz ainda que «estar de bem ou de mal com o poder nos pode facilitar ou dificultar a vida.» E acrescenta: «pode-se vender a alma ao poder por tantas coisas! E, o que é pior, por um preço tão baixo.» Citamos outra passagem do mesmo romance: «Não pensar. Entorpecer por dentro. É isso que procuravam os maoistas: asfixiar até essa pequena liberdade, o pulsar mínimo de um pensamento próprio sepultado no interior da cabeça.»

Monteiro Diniz, ex-Representante da República para a Madeira (Diário 23.7.2011) defende que «há ausência de espírito crítico» e «insuficiência de intervenção da sociedade civil» madeirense.

O juiz conselheiro considera que os madeirenses não querem ouvir «coisas, que dentro de um certo condicionalismo, constituem matéria de silenciamento no plano global da colectividade madeirense.» E, segundo ele, «não é só no plano político, do poder e da oposição, nem da sociedade civil, nem das instituições.» Conclui que «há um sentimento global que traduz uma espécie de tabu sobre as realidades da Madeira, que não são aprofundadas.» Isto para além da «ausência de espírito crítico por parte da sociedade civil.»

Monteiro Diniz promete, no seu livro, «tentar fazer uma escalpelização do porquê desta insuficiência de intervenção da sociedade civil», que tem, a seu ver, «várias causas, umas históricas, outras mais remotas

No seu artigo, o Padre José Luís Rodrigues deixa, por fim, o caminho para vencer o medo: «Assim, deixe que a razão fale mais alto e deixe-se conduzir pelo amor-próprio, concentre-se no desejo de libertação, aquilo que é o oposto dos nossos medos. Este é o amor que há-de expulsar todo o medo. Vamos acender a luz da razão e aprender a sorrir dos temores. Este é o melhor remédio para a mudança de vida na nossa terra e da vida pessoal de cada um individualmente. O melhor remédio está aí, não temerei o que virá e venha o que vier, não virá por mal. E se eventualmente vier o mal, logo encontraremos forças para o vencer, porque o medo deixou de nos ensombrar a razão.»

Algumas lucubrações, em 2006, a respeito do famoso medo:
Raízes do medo: contexto socio-mental e medo de ideias diferentes;
Tristes a olhar para o chão;
Madeira endémica espezinha tolerância e respeito
This is the state of [Madeira] address, motherf*****

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