A literacia digital, para dela retirarmos vantagens, implica estar na posse de outras literacias prévias.
cartoon copyright
A utilização das novas tecnologias não tem, necessariamente, de retirar da sala de aula os apontamentos e as sínteses dos conteúdos escolares. E não se aprende a escrever melhor apenas no papel.
No extremo oposto, é preciso desmistificar também a «crença na instantaneidade do saber pelo acesso aos gadgets», como alerta José Pacheco Pereira, como se a distribuição de computadores transformasse, num estalar de dedos, uma má educação em «boa educação» (ver Ilusão de Sócrates), o insucesso escolar em sucesso escolar. Não funciona assim. Acontece muita coisa pelo meio. As tecnologias são ferramentas, não são um fim em si mesmas nem varinhas mágicas.
Inês Silva, especialista em linguística, no Correio da Educação nº333 (ASA editores), afirma que o «computador ou o quadro interactivo não desenvolvem, por si só, as operações cognitivas complexas que são exigidas à actividade da escrita, se os seus utilizadores se limitarem a copiar, colar, retirar, cortar, reconfigurar, enviar, passar…»
O desenvolvimento de capacidades ao nível da pesquisa, organização, tratamento e gestão de informação e de outras literacias são fundamentais, nomeadamente através do recurso às tecnologias de Informação e Comunicação, mas não se esgotando nelas.
Se isto é uma evidência para o ensino-aprendizagem em geral, mais ainda no 1º ciclo do ensino básico, numa fase precoce da aprendizagem, onde pululam os Magalhães e os alunos se iniciam agora na escrita na posse de um computador individual.
Não será importante que os primeiros passos na escrita/leitura se dêem com caneta e papel/livros, de forma menos asséptica e digital/virtual, favorecendo a aquisição da destreza da escrita manual e cometer/corrigir erros sem o corrector automático a pensar pelos estudantes? Será que os alunos no 1º ciclo devem dar os primeiros passos na Matemática munidos de calculadora? Os processos cognitivos não são os mesmos.
Refere a autora que o «peso cultural da escrita (no sentido de símbolo e instrumento de civilização, instrução, saber) não desapareceu. E cita Fernando Pessoa: “a palavra falada é um fenómeno natural: a palavra escrita é um fenómeno cultural. O homem natural pode viver perfeitamente sem saber ler nem escrever. Não o pode o homem a que chamamos civilizado: por isso, como disse, a palavra escrita é um fenómeno cultural, não de natureza mas de civilização, da qual a cultura é a essência e o esteio.”
Por isso, diz Inês Silva, a «escola tem de ensinar a escrever». O estudante é o «sujeito de um processo de ensino‐aprendizagem cujo papel, para lá do mero utilizador das novas tecnologias, é do produtor‐escrevente.»
E reforça: «copiar, retirar, cortar, reconfigurar, enviar, passar… são, pois, actividades que não desenvolvem as operações cognitivas complexas exigidas à actividade da escrita. Esta apoia‐se nos meios tecnológicos, mas não se esgota nestes.»
«Para lá da tecnologia, [ou a montante dela] há que ajudar o aluno a aprender a escrever [a tal literacia e cultura prévias de que falava José Pacheco Pereira, de forma a tirar vantagem do acesso às tecnologias] – a criar e a recriar textos – o que decorre de uma pedagogia da escrita eficaz e da máxima que alguém sabiamente escreveu [...] ‐ só se aprende a escrever escrevendo.»
O que pode ser feito, sobretudo a partir do 2º e 3º ciclos, também no computador ou espaços na Internet, ferramentas de escrita muito úteis. Não é só com caneta e papel que é escrever. Fazemos a ressalva apenas para o momento de iniciação à escrita no 1º ciclo, em que os meios tradicionais parecem mais adequados e vantajosos, pela maior concretude e naturalidade. E tendo em conta os argumentos de de Inês Silva.
O homem é um ser analógico, num mundo analógico, não pode ser todo virtual/digital, por maior que seja o fascínio e o peso/utilidade das tecnologias de informação e comunicação.
Como já dissemos, não alimentemos a ilusão que o programa e-escolas vai criar um estudante novo. Não é isso que transforma as pessoas. São valores, princípios (educação e formação pessoal) e a cultura que mudam a atitude das pessoas perante o conhecimento e o trabalho.
Tivemos ainda oportunidade de sublinhar neste blogue (Programa e-escola, que proveitos? ou Ilusão de Sócrates), aquilo de que o Abrupto acusa José Sócrates: estar «convencido de que são os gadgets que mudam as pessoas, numa visão tecnocrática típica, sem perceber que o modo como as pessoas os usam pode ou não ser vantajoso conforme as literacias prévias que possuam.»
Memória:
Caso Magalhães 12 : crianças desprotegidas
Caso Magalhães 11 : ainda mais humor
Caso Magalhães 10 : sonho Orwelliano
Caso Magalhães 9 : estéticas
Caso Magalhães 8 : Microsoft
Caso Magalhães 7 : mais humor
Caso Magalhães 6 : humor
Caso Magalhães 5 : louvores à força
Caso Magalhães 4 : JP Sá Couto e fuga ao fisco
Caso Magalhães 3 : quadratura do círculo
Caso Magalhães 2 : mails
Caso Magalhães 1 : Abrupto
Programa e-escola, o outro lado
Programa e-escola, que proveitos?
Ilusão de Sócrates
Sem comentários:
Enviar um comentário