«And some people say that it's just rock 'n' roll. Oh but it gets you right down to your soul» NICK CAVE

domingo, novembro 16, 2008

Escola ideal é diferente da escola real

O realismo subjacente à frase a «escola ideal é diferente da escola real» de Ana Benavente, ex-secretária de Estado da Educação do Governo de António Guterres, na conferência ontem no Funchal, é de realçar.

Num momento em que ainda há muita gente, incluindo importantes teóricos da Educação, versando teorias "românticas", distanciadas da realidade, a pensar que o professor faz toda a diferença e que pode, a partir da sala de aula, mudar o mundo (contexto socio-cultural dos alunos), as políticas educativas ou a Escola (instituição, entidade administrativa) e vencer problemas que o ultrapassam, é confortante ouvir que é preciso combinar o possível com o desejável.

De facto, não é possível criar um estudante novo. Embora existam alguns "milagres", que não são a regra, nem se podem generalizar, é possível fazer o que está ao alcance dos docentes, no dia-a-dia: «Não é preciso um estudante novo», disse Ana Benavente, basta «fazer o melhor no seu espaço.» É o que um grupo de professores tenta fazer, por exemplo, através do Projecto Fazer +, na minha escola.

Aí o papel das boas práticas. A conferencista sublinhou que «é preciso romper este ciclo [da Escola] com boas práticas», isto é, com «respostas para os problemas reais». As práticas que, num dado contexto, resultaram poderão ser reinterpretadas ou adaptadas a outras realidades escolares. Podemos integrar os elementos que se considerem importantes, que sejam uma mais-valia, para uma outra realidade educativa.

Ana Benavente vê nas boas práticas um grande motor de mudança e inovação. Porque existem projectos pedagógicos como o da Escola da Ponte, antes de ter sido desvirtuada e «asfixiada pelo sucesso», que devem passar para outras escolas e não ser vistas apenas como um «bilhete postal».

A visão realista da ex-secretária de Estado da Educação expressou-se também num outro alerta que fez, para evitar desilusões aos mais ambiciosos, voluntaristas e até utópicos: «o tempo de mudança das instituições não é o mesmo do nosso tempo de vida.» É preciso ser paciente. Lançar sementes em vez de querer mudar o mundo. Ou como colocou Ana Banavente: «Para mudar é preciso sermos ambiciosos e modestos», satisfazendo-nos com as «pequenas vitórias». Contudo, às vezes são verdadeiras "migalhas" que nem as insuflando conseguem nutrir o alento.

É importante também que o realismo não paralize. O professor não pode não baixar os braços, deve ser «ousado e assumir as suas margens de liberdade» e fazer o que está ao seu alcance e não o que muitos gostam de pensar que está ao alcance dos agentes da Educação e da pedagogia. Porque é uma utopia pensar que tudo está nas mãos dos docentes, uma forma de outros actores e instâncias descartarem as suas responsabilidades.

Ao falar do «querer (crer)» como algo fundamental para a mudança da escola (as políticas criam a vontade, asseguram o conhecimento e as condições para essa mudança), Ana Benavente referiu que «não se pode dar de beber a um cavalo que não tem sede.»

Embora muitos pedagogos e teóricos da educação coloquem em cima dos ombros do professor a responsabilidade de criar vontade, querer, prazer e interesse pelo trabalho escolar, sabemos que é extremamente difícil motivar, em sala de aula, os estudantes que chegam à escola com um elevado grau de desinteresse, sem cultura de trabalho e com uma atitude negativa e de especial resistência perante o trabalho intelectual.

Cito novamente, agora noutro contexto, o provérbio proferido pela conferencista: deve-se tentar, mas «não se pode dar de beber a um cavalo que não tem sede.» Se há casos em que o professor consegue despertar o «querer» neste ou naquele aluno, com o mínimo de abertura, quanto à maioria dos "resistentes" não é possível. Há um contexto escolar-institucional, familiar e socio-cultural que é complicado vencer e mudar, sobretudo quando se actua tardiamente, já no 3º Ciclo ou no Secundário.

Por isso, repito, embora por vezes eles operem alguns "milagres", não se peça como regra tudo aos professores, que estão fartos de estarem entre a espada e a parede, a arcar com responsabilidades que não são deles, pressionados de cima para baixo (tutela, administração), de baixo para cima (estudantes e famílias) e de todos os lados (envolvente socio-cultural).

Lembro-me da angústia que sentia, nos anos 80, em que surgiu a moda de exigir aos docentes a diferenciação pedagógica no contexto de turmas com elevado número de alunos e através da prática pedagógica tradicional (expositiva). Uma tarefa simplesmente impossível.

Acredito na diferenciação pedagógica, utilizo algumas estratégias de pedagogia activa adptadas do modelo pedagógico do Movimento da Escola Moderna (não confundir com as pedagogias românticas, desfasadas da realidade e dos contextos educativos) e até se consegue alcançar alguns resultados, mas digo, com a força da experiência acumulada de algumas tentativas ou aventuras pedagógicas (e respectivas desilusões ou bofetadas da realidade), o seguinte: perante o estudante que não estuda, não trabalha, não é disciplinado ou concentrado, que tem uma atitude negativa perante o trabalho intelectual, não há pedagogia ou modelo pedagógico que o faça aprender.

Considero que a evolução da pedagogia e da psicologia tiveram um lado negativo: de desresponsabilizar o indivíduo, remetendo para uma justificação exterior a ele, numa desvalorização da sua vontade própria, do seu querer, do seu papel em vencer problemas e dificuldades, como se a culpa fosse sempre da sociedade, de terceiros, do professor, do padre, dos pais, dos políticos ou de Deus, justificando a inércia pessoal. Um certa esquerda, que não acredita na auto-determinação individual e no self made man, gosta de pensar assim.

Recordo as palavras do pedagogo José Agusto Fernandes, mentor do Projecto SOFIA: «as circunstâncias podem condicionar o ser [...] mas nenhuma circunstância da vida pode obrigar nenhum ser humano a ser o que não é, a ser ou não de uma dada maneira. Resta sempre a capacidade de decidir.»

Ora, eu sou um acérrimo defensor desta capacidade individual de decidir, de mudar, de criar, de transformar e transformar-se. Não se desresponsabilize o indivíduo (neste caso o estudante), que não é um mero joguete do destino e do contexto socio-cultural, uma vítima da escola, sem acção ou vontade próprias.

Para citar de novo José Augusto Fernandes, que já tive o privilégio ter como formador na minha escola, por duas vezes, «nós somos 100% o nosso património genético, 100% a educação que tivemos, mas somos, sobretudo, o que fazemos com essas duas componentes».

Não acredito que tenham de ser sempre os outros outros que nos tenham de fazer «querer», ter motivação e vontade. E acredito mais na educação da vontade do que nesse mito chamado motivação. Ao professor cabe criar as melhores condições possíveis para acontecerem as aprendizagens, não para fazer magia ou fazer o trabalho que cabe aos estudantes.

Independentemente das dificuldades e do ponto de partida, é preciso ir à luta e fazer alguma coisa pela vida, em vez de esperar que tudo caia do céu. Que uma qualquer entidade exterior resolva todos os problemas. A autonomia e a autodeterminação individuais servem para quê?

Peçam-me o possível e talvez até consiga o impossível, mas não me peçam o impossível. Não me peçam sempre para ser outra coisa, uma coisa qualquer ideal, qualquer coisa politicamente correcta. E quando "fosse" essa outra coisa pedir-me-iam que fosse outra coisa ainda, um outro professor. É insano. Se a milésima estratégia epdagógica não resultou, então é porque ainda não experimentei a milésima primeira...

Estou cansado de me pedirem, na Educação, implícita ou explicitamente, realizações como se fosse um deus ou um semideus. Como se eu tivesse de ter sempre a resposta e solução (ideal) para tudo no processo de ensino-aprendizagem. Como se tivesse sempre tudo ao alcance dos professores, desde que utilizem a tal estratégia que nos escapa sempre, como uma alucinação no deserto: parece que é agora que se chega ao oásis, mas nunca lá chegamos.

Como diz Álvaro de Campos, no Poema em linha recta, «nunca conheci quem tivesse levado porrada / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.» Ora, é isto que se sente em muitos encontros e debates sobre Educação. São todos tão perfeitinhos e sempre com a verdade na ponta da língua e a solução na manga para todos os males...

E diz mais o mesmo poema: «Quem me dera ouvir de alguém a voz humana / Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; / Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! / Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam. / Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? / Ó príncipes, meus irmãos, / Arre, estou farto de semideuses! / Onde é que há gente no mundo? / Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?»

Os docentes - no intuito de esconder os seus desaires e insucessos (a "porrada" que levam quase todos os dias) - optam por ser politicamente correctos e não expõem a realidade, as suas fagilidades, insuficiências e impossibilidades (limitações humanas). Não abrem o jogo, como dizia há tempos um professor, numa conversa sobre novas pedagogias. Os teóricos alimentam determinados irrealismos e construções porque ganham a vida com isso.

Felizmente, Ana Benavente já viveu muito e terá tido os choques de realidade suficientes para ter a abordagem realista que teve na conferência de ontem, no Funchal. Os professores apanham injecções de realidade todos os dias.

Nestas alturas, gosto também de pensar nas palavras de C. R. Rogers: «...Nem a Bíblia, nem os profetas – nem Freud, nem a investigação – nem as relações de Deus ou dos Homens – podem ganhar precedência relativamente à minha própria experiência directa.»

No outro dia uma aluna escreveu-me um carta (aberta), para passar uma dada mensagem de alerta, que me diz mais sobre a realidade educativa, em contexto, do que muitos tratados de pedagogos e teóricos da Educação: My English teacher, escrito por uma rapariga de 12 anos, está publicado num blogue de escrita das minhas turmas.

Neste momento estou cansado de ouvir falar em Educação, sobretudo aqueles que têm a solução teórica para todos os males ou que acreditam na possibilidade de criar um Estudante Novo, relativizando a natureza humana e a realidade. Também é um erro ou uma impertinência eu querer esfregar a realidade na cara dos outros... o que pode dar a má impressão que sou dono de qualquer verdade...

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